terça-feira, 29 de maio de 2012

Coisas de Caeiro

"Alberto Caeiro", por Lívio de Morais, 1998.
"Não acredito em Deus porque nunca o vi.
            Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
            Sem dúvida que viria falar comigo
            E entraria pela minha porta dentro
            Dizendo-me, Aqui estou!
            (...)
            Mas se Deus é as flores e as árvores
            E os montes e sol e o luar,
            Então acredito nele,
            Então acredito nele a toda a hora,
            E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
            E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.”
(Trecho do poema V; in: O guardador de rebanhos.)

O trecho acima é atribuído a uma das criaturas poéticas mais admiráveis da vasta galeria heteronímica do poeta português Fernando Pessoa. Trata-se do campônio Alberto Caeiro que, numa tarde de 1914, simplesmente “apareceu” dentro do poeta lusitano enquanto este escrevia em pé, à beira de uma cômoda alta. – “E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir”. Sabemos também que há tempos o escritor pensava em fazer uma “partida” ao amigo e poeta Mário de Sá-Carneiro, inventando um poeta bucólico de espécie complicada (e até o nome constitui homenagem: Caeiro, o CaRNeiro sem carne), dono de uma maneira própria de se expressar poeticamente. Não duvide, leitor, Caeiro é singular!
Conforme dito, a Criatura/Caeiro era um jovem camponês (morava numa Quinta), com pouca escolaridade e, por isso mesmo, não formatado pela tradição, pela “cultura à goela abaixo”, pela religião oficial. Ele foi capaz de construir uma simples e consistente obra poética que, antes de tudo, pode também ser entendida como uma espécie de doutrina existencial (paradoxalmente, uma “filosofia antifilosófica”).
Sua maneira de enxergar o mundo e de se relacionar com a realidade pressupõe a retomada de faculdades humanas que, hoje ainda, em tempos de “razão sangrenta” e “espetáculos insinuantes”, são desativadas, aviltadas: os sentidos (“Pensar é estar doente dos olhos”). Não há outra forma de alcançar a verdade senão por intermédio das sensações.
Há quem afirme que o trecho acima seja exemplo do panteísmo de Caeiro, que se manifestaria na crença de uma “força divina que está presente em todas as coisas e perpassa tudo que existe no mundo”. Talvez, observando com mais atenção o caráter da obra, o que se encontre de fato ali seja a manifestação sincera de um “monismo panenteísta”. Um monoteísta acredita em um Deus, já o monista panenteísta acredita que só há Deus e (pan-en-theô) ele está em tudo. Vale!

MIRANDA, Rafael Puertas de. Coisas de Caeiro. Jornal Mogi News, Mogi das Cruzes, 18 de Setembro de 2011. Caderno Variedades, p. 03.

Um comentário:

  1. O que há lá na curva?
    -Eu não sei. Quando chegar lá eu te digo.

    Caeiro nos ensina a viver. Sem demasiadas expectativas, sem lembranças nostálgicas...
    Seja o aqui, viva o agora.
    Carpe Diem.

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