quinta-feira, 31 de maio de 2012

Do outro lado

Não há nada, querido leitor, mais instigante do que empreender o que chamo de “Turismo Bibliófilo”. A receita é bem simples: aproveite, durante viagens longas ou ocasionais, para conhecer e bisbilhotar os sebos, antiquários e bazares da região visitada. Há algum tempo, esta prática me é familiar e, além de encontrar sempre um bom papo, tenho (espécie de versão tupiniquim de “caçadores de relíquias”) adquirido obras muito pitorescas.
Lembro-me ainda de que, em uma de minhas andanças, interior afora, ter esbarrado num livro que me tocou por sua singularidade. Era uma edição nova, não o tipo “múmia”, alimento preferido da minha sinusite e da minha alma.
Tratava-se do romance “O mistério de Edwin Drood”, do célebre escritor inglês Charles Dickens. A tradução, inédita no Brasil, executada razoavelmente pelo esforçado senhor Hermínio C. Miranda e publicada pela editora Lachâtre, em 2002, continha um fato inusitado.
Acontece que, depois de um período de ostracismo, esta história da fase madura do escritor fora parcialmente publicada em folhetins, no ano de 1870. O querido leitor não entendeu errado: Dickens, que já vinha sofrendo com as sequelas de um ataque cardíaco, no dia 09 de Junho do mesmo ano, sucumbe, deixando sua grande última obra pela metade e uma grande dúvida no ar: qual teria sido o fim do protagonista da sinistra narrativa? Por onde andará Edwin Drood?
Mas esta ainda não é a curiosidade.
O livro, além de conter o texto de Charles Dickens vivo, segundo a apresentação, disponibilizava ao leitor uma “continuação psicografada” por um jovem mecânico norte-americano com pouca escolaridade, três anos após a morte do escritor inglês. As duas partes, no livro, eram mescladas a fim de que o leitor as identificasse. Esta versão, descobri depois, fora entusiasmadamente analisada por Sir Arthur Conan Doyle, escritor inglês criador do cativante personagem “Sherlock Holmes” e espírita convicto.
No Brasil, Chico Xavier não teve tanta sorte ao psicografar o crítico e poeta Humberto de Campos. A viúva do escritor articulou uma verdadeira batalha jurídica contra o médium para receber os direitos autorais da obra.
Estranho, crendo ou não, é que, apesar de serem já “autores defuntos”, estes literários ectoplasmas brejeiros renegam sua condição, demonstrando que lhes resta de humano ainda, inalterável, a sanhosa vaidade, o desejo de fama, a fome da glória.

MIRANDA, Rafael Puertas de. Do outro lado. Jornal Mogi News, Mogi das Cruzes, 09 de Outubro de 2011. Caderno Variedades, p. 03.

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