domingo, 22 de julho de 2012

Carta a Saramago


Antes de, propriamente, começar, quero explicar-lhe os motivos que me impeliram a esta empreita: sou um grande apreciador da Literatura que brota de suas mãos. A sua vasta galeria proporcionou-me diversas experiências de significado e compreensão com ressonâncias interiores edificantes. 
Bem jovem, já visitava assiduamente os seus escritos e muitas foram as vezes que cheguei a desconfiar de minha real existência, imaginando-me uma criatura sua, dadas as coincidências constantes entre os medos e angústias de seus personagens e os meus próprios. "Ora (pensará), um personagem meu? De certo perdeu o senso!" e eu lhe direi, no entanto, que muitas vezes, pálido de encanto, percebo-me inaugurar com sua escrita. Acho, inclusive, que cada leitor seu é também uma personagem desgarrada em busca de não sei o quê. 
Tudo isto, acredito, só é possível graças a sua capacidade artística. Sempre, uma metáfora sua fala mais sobre o mundo e suas duras discrepâncias de que uma sisuda e banal notícia que se transmuta em nada rapidamente. Mas seu exemplo extrapola: não basta a denúncia para um mundo que inventa insistentemente a morte. 
Isto posto, confesso que há muito tempo sou assaltado pela ideia fixa de desencadear este diálogo contigo (sabendo de seus compromissos), enviando-lhe uma carta que fosse, antes de tudo, um abraço fraterno (muitos brasileiros o admiram) e, principalmente o pagamento de uma dívida humana: que minhas palavras, brejeiramente anônimas, trevas nas luzes dos bytes, proporcionem um pouco da alegria que já vivenciei com as suas. Obrigado!
Agora, continuo pela tarde que velha um azul-província, respirando o plástico sacrificador de vontades nosso de cada dia, enquanto canteiros floridos teimam olhares brejeiros, as reclamações continuam as mesmas e as pessoas se desentendem sem imaginar a razão.Então, desafiando as leis terrenas das probabilidades, as sinas sinistras dos desencontros e as reentrâncias do fado, envio-lhe por fios estas palavras, José, tão resistentes como a sombra de um elefante e tão errantes como Caim; que te encontrarão, quem sabe, numa destas nubladas e chuvosas manhãs, quando o tédio se assemelha a um moscardo, pairando sobre as pessoas, sempre, cansadas. Oxalá as receba e o destino se cumpre.
***
Esta carta fora enviada ao escritor José Saramago, em 2010, meses antes de sua morte, em junho do mesmo ano.

MIRANDA, Rafael Puertas de. Carta a Saramago. Jornal Mogi News, Mogi das Cruzes, 10 de   Junho de 2012. Caderno Variedades, p. 07.

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