segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Da peçonha II

Ao chamado de uma carcomida e horrível velha, que é a rainha da festa -espécie de anfitriã, no fundo da brenha escura, saltitam seres asquerosos, seguindo o batuque infernal, dançando ao redor da fogueira.
Estão lá: figuras góticas (diabos, capetas, cadáveres e esqueletos), seres folclóricos ("lobisome", mula-sem-cabeça e duendes) e animais consagrados pela cultura popular como asquerosos, malignos, agourentos, violentos e/ou peçonhentos (crocodilo, cobras, lagartixas, sapos, galo-preto, mamangava, taturana e getirana- estas três últimas referidas como "bruxas"); que, durante os ritos, proferem discursos entusiasmados enquanto fazem "bagunça". A comemoração sinistra, no entanto, é atrapalhada pela presença da Morte que, montada numa "égua-amarela", enxota a súcia maldita para debaixo das relvas, para o inferno, para a cova; restando apenas o forte cheiro de enxofre. Aos poucos, o rastro daquela asquerosa folia desaparece:
"(...)E, na sombra daquele arvoredo,
Que inda há pouco viu tantos horrores,
Passeando sozinha e sem medo.
Linda virgem cismava de amores".
Ainda no fim de suas "Poesias Diversas", onde repousa o poema apresentado, Bernardo Guimarães acrescenta um curioso conjunto de notas a respeito de seu texto. Uma das mais curiosas descreve um dos seres mencionados, a Getirana (ou jequitirana/jequitiranaboia): "(...) Getirana, ou Getiranaboia. Insecto raríssimo, que se encontra nos sertões do Brasil. Sua fórma é singularíssima, e só um desenho poderia dar d´ella uma idéia precisa. É uma grande mosca de uma até duas pollegadas de comprimento. Tem azas como as da cigarra, porém excedendo muito ao tamanho do corpo, que é oblongo como o da borboleta. Tem um ferrão e dizem que quando desprende vôo, parte direto com o terrível aguilhão estendido como uma banhoneta, e desgraçado do ente vivo em que toca!... cai imediatamente fulminado".
Bernardo dá mostra de incredulidade diante da interpretação ou crendice popular que enxerga, neste estranho inseto, a marca sinistra da maldade expressa pelo seu suposto "ferrão" peçonhento e mortal.Em verdade, não existe nenhum caso de morte por picada de jequitirana e os estudiosos a retratam como uma inofensiva parente das cigarras. Muitos se debruçaram, inclusive, para a origem da "lenda", que não é exclusivamente brasileira. Então, mesmo sem peçonha, a pobre getirana sofre com a própria "fama".

MIRANDA, Rafael Puertas de. Da Peçonha II. Jornal Mogi News, Mogi das Cruzes, 05 de Agosto de 2012. Caderno Variedades, p. 07.

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