domingo, 16 de setembro de 2012

Pote


Olha, às vezes, devagar,
à beira de suspiro fundo,
ontem volta e as coisas,
não muito nítidas,
continuam, plenas de calmaria.

A janela, na parede brotando umidade,
aguardava olhares com alma de porta, o beco.
Adiante, convulsa rua, confuso rio,
inundava os ares,
prenhe de novidades brejeiras e frustrações vizinhas.

Também, não se engane:
poeira nenhuma assustou minha ânsia,
poeira nenhuma reclamou a demora,
talvez a chuva fazia perfume de chão.

Lá, os jardins brotavam sementes de flamboyant, chapéu-de-sol e
meninas incandescentes sob a luz desbotada; eram inteligíveis.
O mar quieto, lambendo pedras, servia de improvisado confessionário.

Havia guerras que passavam distantes dos mormacentos domingos de televisão.
Menino corria para cá,
corria para longe e não era dono de coisa alguma,
mas, equilibrado no muro, ria muito.

Tudo cabia num pote de vidro.
Uma bola fingida era a sanha,
redemoinho de pés,
enquanto bicicletas fugiam desencantadas,
o repouso das horas.

Homens a caminho do trabalho, indecifráveis,
passavam enclausurados em mangas de camisas,
engolindo secas lembranças e respirando dívidas fúteis.
Pena não usarem mais chapéu, pois as tardes choravam.

De quando em quando, a roupa não me servia e
a sombra crescida na parede, certeza, parecia mais bonita que o resto do corpo.
Ia a avó, animada, alinhavando bermudas caseiras e versos.
Velhos cadernos de versos dormiam no vaso mudo da sala de visitas da avó.
Sempre os mesmos carros traziam trabalhos, parentes e gritos.

Ideias inofensivas amornavam vontades e
a inutilidade mirabolante das coisas lembrava mansidão,
lembrava a serra, lembrava a brisa que fazia falta acabando.

("Mãe, olha!": Druzila rodopiava, exibindo-se no azul com colar de siris, rainha!
Fazia brinco... os siris... as pinças... calças dobradas em joelhos)

Tudo instantaneamente líquido,
alheio a caos maior e eu sabia,
desde que a noite quente não mentisse medo
e o sereno morresse quieto na telha moldada na coxa,
haver em qualquer canto um segredo escondido, o mistério.

As coisas, assim lembradas,
tornam-se fundas, muito mais até,
são outras, o avesso;
principalmente, em razão de que outros olhos molhados
não dão bons espelhos.
MIRANDA, Rafael Puertas de. Pote. Jornal Mogi News, Mogi das Cruzes, 16 de Setembro de 2012. Caderno Variedades, p. 07.


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