quinta-feira, 31 de maio de 2012

Confusões Literárias

Às vezes, querido leitor, espanto-me sobremaneira com algumas confusões relacionadas à Literatura, área pela qual tenho tanto apreço. O último grande imbróglio (beirando catástrofe) que, nos ambientes virtuais, causou uma avalanche de críticas, chacotas, discussões e também me fez sangrar foi o mal acabado vídeo institucional da Caixa Econômica Federal, veiculado recentemente em rede nacional onde o escritor realista brasileiro Joaquim Maria Machado de Assis é representado por um artista branco. Realmente, assustador. Fico imaginando o percurso desta mídia: deve ter passado pelas mãos bobas de publicitários, estagiários, editores, coordenadores de programação e nenhum destes indivíduos atentou para o fato de que a pequena narrativa continha um enorme equívoco.
Nascido em 21 de Junho de 1839, Machado era filho de Francisco José de Assis, um pintor de paredes mulato, e Maria Leopoldina da Câmara Machado, lavadeira açoriana. Conseguiu, de forma surpreendente, superar as dificuldades de sua condição social de jovem pobre e agregado, suplantando, também, as barreiras que lhe eram impostas pelo “racismo institucionalizado” daquela época: era mulato.
Ainda hoje, sejamos honestos, o preconceito velado (a pior espécie por sinal – o não admitido) é uma realidade constante da nossa sociedade, mas quero crer que a “transmutação” do nosso grande mestre, pai de Capitu, no famigerado vídeo não seja de natureza ideológica, tendenciosa. Trata-se apenas de uma grande e total demonstração de ignorância. Vociferamos tanto, inclusive, que agora refizeram a propaganda. Para assistir aos dois vídeos, basta clicar no Youtube: Machado de Assis branco, Caixa burra.
A grande ironia é que talvez a pessoa que mais se entusiasmasse com esse processo de embranquecimento fosse o próprio Machado. Como já foi dito nesta coluna, quando apresentei o poeta parnasiano Gonçalves Crespo: “(...)era negro e tinha muito orgulho de sua descendência. Numa carta, nunca respondida, destinada a Machado de Assis (dizem que o escritor realista ficou mortificado com o que leu), dizia: ‘(...) e por uma secreta simpatia que para si me levou quando me disseram que era... de cor como eu. Será?’”.
***
Sobre o artigo “Steve Jobs”, do Doutor Dirceu Do Valle, publicado neste jornal, para que o verso não pareça deslocado, não nos esqueçamos de que a loucura é capaz de liquidar a condição de “cadáver adiado que procria”, segundo Pessoa.

MIRANDA, Rafael Puertas de. Confusões Literárias. Jornal Mogi News, Mogi das Cruzes, 16 de Outubro de 2011. Caderno Variedades, p. 03.

Do outro lado

Não há nada, querido leitor, mais instigante do que empreender o que chamo de “Turismo Bibliófilo”. A receita é bem simples: aproveite, durante viagens longas ou ocasionais, para conhecer e bisbilhotar os sebos, antiquários e bazares da região visitada. Há algum tempo, esta prática me é familiar e, além de encontrar sempre um bom papo, tenho (espécie de versão tupiniquim de “caçadores de relíquias”) adquirido obras muito pitorescas.
Lembro-me ainda de que, em uma de minhas andanças, interior afora, ter esbarrado num livro que me tocou por sua singularidade. Era uma edição nova, não o tipo “múmia”, alimento preferido da minha sinusite e da minha alma.
Tratava-se do romance “O mistério de Edwin Drood”, do célebre escritor inglês Charles Dickens. A tradução, inédita no Brasil, executada razoavelmente pelo esforçado senhor Hermínio C. Miranda e publicada pela editora Lachâtre, em 2002, continha um fato inusitado.
Acontece que, depois de um período de ostracismo, esta história da fase madura do escritor fora parcialmente publicada em folhetins, no ano de 1870. O querido leitor não entendeu errado: Dickens, que já vinha sofrendo com as sequelas de um ataque cardíaco, no dia 09 de Junho do mesmo ano, sucumbe, deixando sua grande última obra pela metade e uma grande dúvida no ar: qual teria sido o fim do protagonista da sinistra narrativa? Por onde andará Edwin Drood?
Mas esta ainda não é a curiosidade.
O livro, além de conter o texto de Charles Dickens vivo, segundo a apresentação, disponibilizava ao leitor uma “continuação psicografada” por um jovem mecânico norte-americano com pouca escolaridade, três anos após a morte do escritor inglês. As duas partes, no livro, eram mescladas a fim de que o leitor as identificasse. Esta versão, descobri depois, fora entusiasmadamente analisada por Sir Arthur Conan Doyle, escritor inglês criador do cativante personagem “Sherlock Holmes” e espírita convicto.
No Brasil, Chico Xavier não teve tanta sorte ao psicografar o crítico e poeta Humberto de Campos. A viúva do escritor articulou uma verdadeira batalha jurídica contra o médium para receber os direitos autorais da obra.
Estranho, crendo ou não, é que, apesar de serem já “autores defuntos”, estes literários ectoplasmas brejeiros renegam sua condição, demonstrando que lhes resta de humano ainda, inalterável, a sanhosa vaidade, o desejo de fama, a fome da glória.

MIRANDA, Rafael Puertas de. Do outro lado. Jornal Mogi News, Mogi das Cruzes, 09 de Outubro de 2011. Caderno Variedades, p. 03.

quarta-feira, 30 de maio de 2012

Das "intenções" do não dizer

Os Caçadores na Neve, 1565.
Paisagem de Inverno (Winter Landscape)

Os três homens descendo a colina invernal
em marrom, com longas varas e um bando de cães
nos calcanhares, através do arranjo das árvores,
além das figuras ao redor da palha em chamas,
retornando gelados e silenciosos a sua cidade,

voltando à neve dormente, à pista
animada pelas crianças, aos homens mais velhos,
aos companheiros antigos que jamais poderão alcançar,
à luz azul, aos homens com escadas, ao lado da igreja;
ao trenó e à sombra na rua crepuscular,

não têm consciência de que, no tempo em pó
do porvir, o resíduo maligno da história
distendida; serão vistos no alto
dessa mesma colina: quando toda a sua companhia
estiver irrecuperavelmente perdida;

estes mesmos três homens em marrom,
testemunhados por pássaros, olharão a paisagem e dirão,
por sua configuração com as árvores,
a pequena ponte, as casas vermelhas e a fogueira:
Que lugar, que hora, que ocasião matinal

os enviou ao bosque, uma matilha de rafeiros
nos calcanhares e as  longas varas sobre os ombros,
para retornarem como agora os vemos,
afundados até os tornozelos na neve, colina invernal abaixo,
descendo, enquanto três aves espiam e a quarta voa.
             
Sir John Betjeman   
(Tradução: Rafael Puertas de Miranda – Inverno, 2011.)

***
O interessante poema acima fora escrito por uma das mais populares vozes poéticas inglesas do século XX: Sir John Betjeman. O texto, marcado por uma firme atmosfera sombria, possui estreita relação com os materiais extraídos oportunamente da pintura “Os Caçadores na Neve” (1565), do artista brabante Pieter Bruegel, o Velho (1525-1569).
Mas, o querido leitor não se engane: este escrito não é um mero equivalente verbal do quadro, tampouco uma releitura, uma simples interpretação.
Um olhar atento revelará a pensada associação entre o texto poético e a densa atmosfera política de seu contexto de produção (Betjeman estava em Nova Iorque, quando o escreveu, entre 1938 e 1939 – na Europa, nazistas latiam!).
Trata-se, portanto, de um inteligente poema de guerra: caçadores com suas varas (e não lanças) que se preparam para um novo conflito, para o desterro, para o retorno... Este, definitivamente, não é o tema de Bruegel.
Betjeman utiliza a nebulosa imagem de um mundo tranquilo, recusando o que é preciso ser dito a respeito de um mundo violento, à beira do colapso, do horror. Dizer tudo, não dizendo nada. Estas intenções! Vale!

MIRANDA, Rafael Puertas de. Das "intenções" do não dizer. Jornal Mogi News, Mogi das Cruzes, 02 de Outubro de 2011. Caderno Variedades, p. 03.
LINK do Google Art Project:
http://www.googleartproject.com/pt-br/collection/kunsthistorisches-museum-vienna-museum-of-fine-arts/artwork/hunters-in-the-snow-winter-pieter-bruegel-the-elder/676859/#

terça-feira, 29 de maio de 2012

Coisas de Caeiro

"Alberto Caeiro", por Lívio de Morais, 1998.
"Não acredito em Deus porque nunca o vi.
            Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
            Sem dúvida que viria falar comigo
            E entraria pela minha porta dentro
            Dizendo-me, Aqui estou!
            (...)
            Mas se Deus é as flores e as árvores
            E os montes e sol e o luar,
            Então acredito nele,
            Então acredito nele a toda a hora,
            E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
            E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.”
(Trecho do poema V; in: O guardador de rebanhos.)

O trecho acima é atribuído a uma das criaturas poéticas mais admiráveis da vasta galeria heteronímica do poeta português Fernando Pessoa. Trata-se do campônio Alberto Caeiro que, numa tarde de 1914, simplesmente “apareceu” dentro do poeta lusitano enquanto este escrevia em pé, à beira de uma cômoda alta. – “E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir”. Sabemos também que há tempos o escritor pensava em fazer uma “partida” ao amigo e poeta Mário de Sá-Carneiro, inventando um poeta bucólico de espécie complicada (e até o nome constitui homenagem: Caeiro, o CaRNeiro sem carne), dono de uma maneira própria de se expressar poeticamente. Não duvide, leitor, Caeiro é singular!
Conforme dito, a Criatura/Caeiro era um jovem camponês (morava numa Quinta), com pouca escolaridade e, por isso mesmo, não formatado pela tradição, pela “cultura à goela abaixo”, pela religião oficial. Ele foi capaz de construir uma simples e consistente obra poética que, antes de tudo, pode também ser entendida como uma espécie de doutrina existencial (paradoxalmente, uma “filosofia antifilosófica”).
Sua maneira de enxergar o mundo e de se relacionar com a realidade pressupõe a retomada de faculdades humanas que, hoje ainda, em tempos de “razão sangrenta” e “espetáculos insinuantes”, são desativadas, aviltadas: os sentidos (“Pensar é estar doente dos olhos”). Não há outra forma de alcançar a verdade senão por intermédio das sensações.
Há quem afirme que o trecho acima seja exemplo do panteísmo de Caeiro, que se manifestaria na crença de uma “força divina que está presente em todas as coisas e perpassa tudo que existe no mundo”. Talvez, observando com mais atenção o caráter da obra, o que se encontre de fato ali seja a manifestação sincera de um “monismo panenteísta”. Um monoteísta acredita em um Deus, já o monista panenteísta acredita que só há Deus e (pan-en-theô) ele está em tudo. Vale!

MIRANDA, Rafael Puertas de. Coisas de Caeiro. Jornal Mogi News, Mogi das Cruzes, 18 de Setembro de 2011. Caderno Variedades, p. 03.

Não é um erro!

Definitivamente, não é um erro afirmar que, com sua prosa bem acabada e honesta (e, diga-se de passagem, avessa às fantasias entediantes como as que encontramos aos montes pelas prateleiras afora), o estudioso escritor catarinense Cristovão Tezza, autor do premiado e admirável romance "O Filho Eterno" (Record, 2007) e do singular e plástico "Breve Espaço Entre Cor e Sombra" (1998), é um dos grandes nomes da prosa contemporânea brasileira; Literatura grandiosa que empolga pela qualidade, pela temática e pela forma do dizer, inclusive. 
Sua última publicação, o romance "Um Erro Emocional" (Record, 2010) é uma verdadeira prova de que, em termos literários, pode-se fazer muito com pouco; uma verdadeira aula de condução narrativa. O recado é claro: há talento para além de Fonseca.
Na obra, o leitor, previamente, toma ciência do destrambelhado encontro entre os protagonistas (o problemático escritor Paulo Donetti e Beatriz, revisora e fã do autor ficcional) para, depois, esgueirar-se pelos escombros interiores das personagens.
Por intermédio de uma bem empregada estrutura narrativa onisciente e multisseletiva (geralmente, a passagem do narrador onisciente para o narrador-testemunha mata a onisciência - neste caso quem sucumbe é o "alguém que narra": a história, predominantemente, vem, através da mente das personagens, de suas vivências e impressões), discursos indiretos e monólogos interiores; Tezza inverte a lógica romanesca de rentável livro de vampiro mequetrefe (a do leitor espectador passível) para fazer de quem lê um construtor de sua história.
Cristovão peca suavemente, no entanto, ao pregar na boca do escritor/ficção Donetti elogios exagerados ao escritor "real" sul-africano Coetzee, autor de "Desonra". Não precisava, mas a empolgação é justificada pelo simples fato de que não há como sair ileso de leituras ricas como essa.
Resultado: texto de quem sabe o que faz. Vale!

***
Lançamentos Imperdíveis de Setembro:
Dia 15-09 - (Saraiva, Mogi): "Além dos Muros da Escola: As Causas do Desinteresse, da Indisciplina e da Violência dos Alunos" (Papirus, 2011), do querido professor mogiano César Augusto Alves da Silva.
Dia 17-09 - (Centro Cultural Francisco Moriconi, em Suzano): "Memórias de Onã", do querido professor Marco Aurélio Maida, e "Vacuos Mundi", de Claudio Domingos", ambos livros de contos.

MIRANDA, Rafael Puertas de. Não é um erro!. Jornal Mogi News, Mogi das Cruzes, 11 de Setembro de 2011. Caderno Variedades, p. 03.

Brasiliana Digital


Imagine, querido leitor, poder folhear as primeiras edições dos principais escritores em língua portuguesa. Imagine poder revisitar os principais periódicos culturais brasileiros de fins do século XIX e início do século XX (toda a “KLAXON”, “A Cigarra”, etc!). Imagine, querido estudante, poder bisbilhotar as primeiras edições de todas as leituras obrigatórias dos vestibulares da Fuvest e Unicamp. Manuscritos do século XVIII, imagens raras, mapas antigos... Imagine poder descarregá-los em seu computador ou tablet ou smartphone inteiramente grátis, no formato PDF (extensão). Parece loucura, mas isto já é uma realidade. Basta acessar incrível site da Biblioteca Brasiliana (www.brasiliana.usp.br), gerido pela Universidade de São Paulo.
Este fantástico portal, que já é considerado fonte inesgotável e inevitável de pesquisas em áreas diversas das humanidades, corresponde a uma das etapas de realização do projeto, iniciado em 2005, de acomodação do respeitável acervo reunido ao longo de oitenta anos pelo bibliófilo paulistano José Mindlin (1914-2010) e que, seguindo sua vontade e a de sua família, fora doado integralmente à USP num gesto de extrema generosidade que repercute concretamente nos estudos acadêmicos brasileiros. Dizia o empresário do ramo de peças automobilísticas fascinado por livros raros: “Nunca me considerei o dono desta biblioteca. Eu e Guita [esposa] éramos os guardiões destes livros que são um bem público”. Aproveitemos, então!
A biblioteca é classificada como uma das mais relevantes coleções do gênero formada por um particular. São cerca de 15 mil títulos, ou 40 mil volumes: obras de literatura brasileira (e portuguesa), relatos de viajantes, manuscritos históricos e literários (originais e provas tipográficas), periódicos, livros científicos e didáticos, iconografia (estampas e álbuns ilustrados) e livros de artistas (gravuras).
Deve-se destacar também a competente atuação da equipe responsável pela elaboração e gestão do site que, avesso a qualquer forma de burocracia estúpida (como cadastros e outras chatices) e com um layout fantástico, propicia uma navegação prática e, inclusive, a interação com redes sociais. Os comandos de pesquisa e de download (para descarregar!) são muito simples. Olha, não perca tempo! Tenho me deliciado com a leitura da obra completa (primeiras edições) da poetisa parnasiana Francisca Júlia (1871-1920), já disponível no referido sítio. Vale!

MIRANDA, Rafael Puertas de. Brasiliana Digital. Jornal Mogi News, Mogi das Cruzes, 04 de Setembro de 2011. Caderno Variedades, p. 03.

Revisitando Gonçalves Crespo

António Cândido Gonçalves Crespo (Rio de Janeiro, 11 de Março de 1846 — Lisboa, 11 de Junho de 1883).
Numa manhã amena de 1860, um menino de quatorze anos abandonava sua terra natal, o Brasil, em busca de tratamento que fosse capaz de liquidar sua resistente fraqueza. Num vapor, dirigir-se-ia a Portugal. Seu pai, rico comerciante português naturalizado brasileiro, alinhavara o destino do jovem brasileiro que, em terras longínquas, fez-se homem respeitável, advogado, constituiu família (casou-se com a intelectual portuguesa Maria Amália Vaz de Carvalho), deputado e, além disso, forjou significativos textos poéticos filiados à estética Parnasiana, da qual foi um dos responsáveis pela adoção, transposição e adequação à Literatura Lusa.
Seus poemas, encontrados todos nas obras Miniaturas (1870) e Nocturnos (1882), influíram notavelmente no Brasil, precursores da nova escola. Era perito na elaboração de “quadros” poéticos (“Cromos”), nos quais, ao invés de falar insistentemente de si mesmo e de particulares sentimentos (em arroubos sentimentais próprios de cantores de música sertaneja ou bandas “emo”), o eu-lírico descreve com certa objetividade cenas do cotidiano (prática própria da impessoalidade parnasiana). Dono de verso seguro, o desterrado António Cândido Gonçalves Crespo nos deixou textos onde palpitam brasilidade, tais como a Sesta, Na roça, a Canção, Ao meio dia e Velhas Negras (elemento dispensado pelo parnasianismo empolado, confeiteiro e estrábico de um Olavo Bilac).
Comumente, em Histórias da Literatura Portuguesa, encontramos Gonçalves Crespo na seção: escritores brasileiros. Estranhamente, são poucos os autores nacionais que o admitem como poeta parnasiano brasileiro e em muitos canhestros livros didáticos não há sequer uma menção ao bardo.
Aos trinta e sete anos, em 1883, morria Crespo (fora acometido pela tuberculose). Em 1896, a já ignóbil e fanfarrona Academia Brasileira de Letras impedia que Silva Ramos adotasse Gonçalves Crespo como patrono de sua cadeira. Talvez, o impedimento tenha sido impulsionado pelo mesmo motivo que levara a preconceituosa crítica formadora de opinião a sonegar um escritor tão importante: Gonçalves Crespo era negro e tinha muito orgulho de sua descendência. Numa carta, nunca respondida, destinada a Machado de Assis (dizem que o escritor realista ficou mortificado com o que leu), dizia: “(...) e por uma secreta simpatia que para si me levou quando me disseram que era... de cor como eu. Será?”.
           
MIRANDA, Rafael Puertas de. Revisitando Gonçalves Crespo. Jornal Mogi News, Mogi das Cruzes, 28 de Agosto de 2011 e republicado em 13 de Novembro de 2011. Caderno Variedades, p. 03.

O caráter iniciático da obra pessoana

Numa carta endereçada a Adolfo Casais Monteiro, datada de 13 de Janeiro de 1935, o poeta modernista português Fernando Pessoa, autor da hermética obra Mensagem (1934), declarava: “(...)Há três caminhos para o oculto: o caminho mágico (incluindo práticas como as do espiritismo, intelectualmente no nível da bruxaria, que é magia também), caminho esse extremamente perigoso, em todos os sentidos; o caminho místico, que não tem propriamente perigos, mas é incerto e lento; e o caminho alquímico, o mais difícil e o mais perfeito de todos, porque envolve uma transmutação da própria personalidade que a prepara, sem grandes riscos, antes com defesas que os outros caminhos não têm”.
O raciocínio apresentado no trecho (a escolha do caminho certo) evidencia um dos aspectos mais instigantes da vida do criador dos Heterônimos e, por conseguinte, constitui matéria indispensável para o total entendimento e apreciação de sua singular atividade poética e de considerável conjunto de poemas – estabelecidos pelo crítico português Jorge Nemésio em “A obra poética de F.P.”; e, no Brasil, divulgados pelo professor João Alves das Neves em “F. P.: Poesias Ocultistas” –: o grande apreço do poeta pelo estudo da tradição Hermética e seus desdobramentos (institucionalizações); ou seja, pelo estudo disciplinado das doutrinas ocultistas.
Desta verdadeira “imersão” no imaginário místico e espiritual das correntes esotéricas, investiga e seleciona variada gama de imagens, símbolos, ritos e mitos para depois os incorporar ao seu repertório artístico literário.
Respeitando a ordem cronológica dos eventos, os fatores, que melhor justificam a adesão do poeta a estas correntes, sejam: a presença constante da morte em família, a descendência judaica (era praticante da Cabala), a convivência com a tia médium Anica, os estudos autodidatas de Numerologia e Astrologia, uma suposta iniciação na extinta Ordem Templária portuguesa e o contato com textos de Ordens Iniciáticas ativas (como dominava fluentemente a Língua Inglesa, traduziu para o Português diversos livros doutrinários e ritualísticos).
Deixou-nos, então, considerável obra-esfinge, que obriga o bom estudioso e o leitor astuto a relevarem um diversificado e rico ponto de referência, muitas vezes descartado ou sonegado por aqueles que consideram a tradição do pensamento ocidental e a mitologia cristã como únicos pilares possíveis da formação do pensamento artístico literário. Vale!

MIRANDA, Rafael Puertas de. O caráter iniciático da obra pessoana. Jornal Mogi News, Mogi das Cruzes, 21 de Agosto de 2011. Caderno Variedades, p. 03.

Da forma


poemeto à clef
            Olha, sob pena de parecer óbvio,
            a poesia não dorme,
            não come,
            não fala...
            A poesia engana e,
            contrariando colares de bola,
            não há Trova que a prenda.
            (Também, soluço nenhum calou meu degredo,
            soluço nenhum clareou o dia,
            ou diminuiu a crise.)
            Lá fora, ainda, as pessoas
            amam e andam via
            BLUETOOTH®,
            BLUETOOTH®,
            BLUETOOTH®…
            (repetir em voz alta, simulando cansado coração de plástico).
           
            - Metonímia, Metonímia,
            dai-me perna enquanto boca.
            A Metáfora é a gota que secou minha lagoa. –

***
Sonegados, propositadamente, as ousadias e méritos da estética “verbivocovisual”, a estrutura do poema obedece a duas linhas distintas de desenvolvimento: a do delambido “poema elaborado”, empanturrado de rigor formal (e são raros os casos em que não passam de grosseiras tentativas), e a do poema solto, detentor de uma composição menos rígida, embalada por uma dicção mais natural, espontânea, caótica (e não direi que o último é Moderno, porque exemplos não faltam, nas Histórias Literárias, de poetas modernistas que liquidariam esta simplificação). Há quem diga que essas linhas de desenvolvimento não passam de duas metades que, unidas, completam a verdadeira expressão poética. Será? Tão antinatural como uma flor “Made in China”, o lirismo tricotado e enfermiço se distancia cada vez mais do real absoluto.
***
Dedico este artigo ao meu pai, Paulo Afonso, pela forma como, sobretudo, ensinou-me o que é ter coração. Parabéns, pai.

MIRANDA, Rafael Puertas de. Da forma. Jornal Mogi News, Mogi das Cruzes, 14 de Agosto de 2011. Caderno Variedades, p. 03.

poemático


Uma breve consulta e contraste dos dicionários que eventualmente se tem à mão podem confirmar as corriqueiras discrepâncias conceituais entre as engajadas explicações dos verbetes “POEMA” e “POESIA”, respectivamente.
Tais desencontros são facilmente justificados, se atentarmos para o percurso desta difícil tarefa teórica que já se desdobrou em volumosa bibliografia responsável pelo estabelecimento de uma tangível e inegável diferença entre termos tão “assanhados” – no passado, inclusive, indissociáveis.
Aristóteles (séc. IV a.C.) já empregava aparentemente os termos (poiema/poiesis) com o mesmo sentido. Também a tradição da língua portuguesa registra a mesma correspondência semântica, excetuando-se as grandes narrativas em versos (Epopeias - agora sem acento graças à reforma ortográfica!), classificados costumeiramente como poemas épicos, poemas heroicos, etc. No século XIX, alguns dicionários da Língua Portuguesa acrescentavam à definição da palavra poesia a conotação de composição poética de pouca extensão (poema curto).
Estas oscilações semânticas (nos sentidos) e a falta de discussão a respeito dos significados “maduros” dos dois vocábulos têm certamente contribuído com os constantes deslizes que habitam os livros de poetas diversos, diletantes ou não (abundam as “minhas poesias” ou simplesmente “poesias”); perpetuando, desta forma, uma noção não adequada aos depurados parâmetros teóricos, que tratam o poema como um objeto empírico, uma realidade concreta, receptáculo material da poesia que, ao contrário, é apresentada como essência mestra, espécie de linguagem particular esvaziada de existência concreta que se faz  presente em outras formas de expressão (há poesia numa boa fotografia).
Toda pessoa que escreve, portanto, é capaz de “parir” um poema. Por isso, o sono entorpece os sentidos, quando somos obrigados a ler um típico e abominável poema de circunstância – “Poema do dia do Índio”, “Poema do dia das Mães” – ou um poema fabricado com rimas tipo “lasanha congelada” – estavam, apaixonavam, brilhavam, etc – ou demais aberrações que povoam prateleiras empoeiradas. Entretanto, a poesia, esfomeada como uma rosa, é resultado de outra aprendizagem e precariamente inoculada em tempos tão prenhes de ignorância e embrutecimento.  
***
Dedico este singelo artigo à memória do professor e amigo Erivelto Martins dos Santos. A “História” não será mais a mesma.

MIRANDA, Rafael Puertas de. poemático. Jornal Mogi News, Mogi das Cruzes, 07 de Agosto de 2011 e republicado em 05 de Fevereiro de 2012. Caderno Variedades, p. 03.

A Malha


Imagino, querido leitor, o trabalho árduo daqueles guardiões que zelam pelo preenchimento e arrumação das seções deste estimado jornal, o Mogi News. É que, às vezes, a empolgação me vitima e meus amigos redatores, cirurgiões da boa hora, têm de amputar alguns trechos, extrair algumas concordâncias, poupar algumas vírgulas, descascar o “pastel” a fim de que meu texto sobreviva neste espaço digno que me cabe.
No último, a “Balada da peste branca”, que abordava ligeiramente as sequelas deixadas pela Tuberculose na Arte Literária, tanto nas obras como nas biografias, abduziu-se, além de um “S”, o grande motivo do meu escrito e, por isso, o retomo.
Dizia que “o autor de Pneumotórax (Manuel Bandeira), que enfrentara a morte de perto, viveu mais de oitenta anos” – segue a conclusão – e “a ele, o escritor paraibano José Lins do Rego dedica o belo e melancólico romance: “Pureza” (1937), onde um narrador em primeira pessoa destrincha seus medos, sua trágica história familiar assombrada pela doença e seu exílio compulsório na a erma estação ferroviária que dá nome ao livro. Pelas intensas descrições e para a total compreensão das marcas indeléveis deixadas nas vidas de quem bailou com a peste branca, vale!”.
E vale mesmo! Há tempos, o autor de “Menino de Engenho” (1932) decidiu habitar a minha prateleira e confesso que, meio a contragosto, ruminei seus textos do “Ciclo da cana-de-açúcar”. No início deste mês, no entanto, fui surpreendido por uma belíssima edição de “Pureza” encontrada em um Sebo mogiano: publicada pela José Olympio Editora, em 1961, com fantásticos desenhos de Luís Jardim. Mergulhei na trama e fiquei pasmo. O livro, lançado após a conclusão do “Ciclo” mencionado acima, não carrega os trejeitos sedativos dos romances regionalistas do mesmo autor – a roda a ranger lamuriosamente.
Sem se desprender totalmente dos acontecimentos monótonos que embalam a rotina da estação ferroviária e que reverberam na consciência enfermiça e insegura do personagem central (Lourenço de Melo), José Lins se volta para uma madura narrativa interiorizada e melancólica, em tom de diário íntimo, que fisga o leitor treinado à primeira olhadela. Boa dica de leitura para estas tardes invernais.
***
Aproveito este espaço para estimar as melhoras ao amigo Márcio Siqueira, editor-chefe do Grupo Mogi News. Aguardamos seu retorno para que nos relate detalhadamente os desmazelos burocráticos dos quais foi vítima, quando internado. Até breve!

MIRANDA, Rafael Puertas de. A Malha. Jornal Mogi News, Mogi das Cruzes, 31 de Julho de 2011. Caderno Variedades, p. 03.

Balada da Peste Branca

E eu sei que vou morrer... dentro em meu peito
Um mal terrível me devora a vida:(...)”
Mocidade e Morte, de Castro Alves.

A Tuberculose, irremediavelmente, deixou marcas profundas em diversas formas de manifestações artísticas. Na Literatura, durante o século XIX, enquanto vigorava a estética do Romantismo, cavoucou, inclusive, o patamar de coqueluche (e que a sensível leitora me perdoe pelos trocadilhos) entre o meio artístico boêmio, que a cultivava como “doença de intelectual”. Assim, como cultura de mote, o “Mal do Século” frequentou assiduamente dúzias de ladinos textos poéticos e, em alguns casos, teimando realidade, ceifou precocemente a vida de muitos dos escarrados escritores de nossas histórias literárias.
Em Portugal, Soares de Passos, Cesário Verde e Antonio Nobre, ainda jovens, foram acometidos pela balada da peste branca. O último, autor do belíssimo e melancólico livro “”, segundo afirma o saudoso crítico maranhense Josué Montello, “(...) para dissimular, nos dias da juventude o pavor que a Morte lhe inspirava, Antônio Nobre procurou fazer-lhe a corte (...). No entanto, quando a Morte se lhe apresentou, com a febre vermelha das hemoptises, o primeiro cuidado do poeta, que antes se fizera passar como tuberculoso, foi açodadamente esconder a doença”.
No Brasil, a doença ganhou os pulmões debilitados do noctívago Álvares de Azevedo, do saudosista Casimiro de Abreu e do libertário Castro Alves. O primeiro, boêmio assumido (“baladeiro”, para os mais jovens), antes de ser vitimado pelo bacilo mortal, fora contaminado pelas belíssimas armações poéticas doentias de Musset e Byron ("gostarei de morrer tísico porque as jovens têm a maior compaixão quando vêem um doente no leito de morte").
No primeiro quartel do século XX, o tratamento profilático da moléstia ganhou as páginas do gênero Romance com a magistral obra do escritor alemão Thomas Mann: “A Montanha Mágica” (1924). Nela, o jovem rico entediado Hans Castorp viaja para um sanatório em Davos, na Suíça, onde seu primo está instalado. Aos poucos o apático rapaz percebe que a visita, instigada por familiares, tem outro fim: sua própria internação.
 Coincidentemente, as aflições de Hans se identificam com as do jovem poeta modernista brasileiro Manuel Bandeira, que abandona o curso de arquitetura da Escola Politécnica de São Paulo em virtude do mal do peito e, depois de errar por diversos sanatórios (incluindo o de Clavadel, na Suíça), é curado com a primeira safra de antibióticos. O autor de “Pneumotórax”, que enfrentara a morte de perto, viveu mais de oitenta anos.
Adiante, José Lins do Rego dedica a Bandeira o interessante e trágico romance: “Pureza” (1937), onde um narrador em primeira pessoa destrincha seus medos, sua trágica história familiar assombrada pela doença e seu exílio compulsório na a erma estação ferroviária que dá nome ao livro. Pelas intensas descrições e para a total compreensão das marcas indeléveis deixadas nas vidas de quem bailou com a peste branca, vale!

MIRANDA, Rafael Puertas de. Balada da Peste Branca. Jornal Mogi News, Mogi das Cruzes, 24 de Julho de 2011. Caderno Variedades, p. 03.

Noites Perdidas


“A Consciência Humana é este morcego!
Por mais que a gente faça, à noite, ele entra
Imperceptivelmente em nosso quarto!”
(“O Morcego”, de Augusto dos Anjos)

A madrugada é a boca do acaso, do incidente fortuito, do evento inesperado, da coincidência ébria. Verdades teimosas se ocultam entre as frestas escuras de bares de toda sorte, onde náufragos bêbados ruminam suas empreitas, seus infortúnios, suas sarjetas.  A louca noite.
Nestes instigantes ambientes espessos e esfumaçados, os destinos das personagens do Conto “Dentista”, de Roberto Bolaño (1953-2003), encontrado no excelente livro “Putas Assassinas” (Companhia das Letras, 2008), são-nos delineados por um narrador em primeira pessoa atormentado por uma recente desilusão amorosa e que procura, na cidade mexicana de Irapuatu, serenidade e tempo para pensar no futuro.
Logo que chega, é recepcionado pelo seu colega de universidade, Pancho, e não de profissão: aquele formado em letras; este, em odontologia. O amigo hospedeiro confessa-lhe de supetão que é “responsável” pela morte de uma índia, que fora operada por dois cirurgiões novatos inábeis em seu consultório. Tanto ele, quanto os jovens atrapalhados, trabalham como voluntários, atendendo pessoas humildes da comunidade.
E este pretexto suspenso (e não é o único), esta chaga latejante na consciência, impele-os a uma verdadeira romaria pelos bares e espeluncas da periferia da cidade, incursões urbanas madrugada adentro.
A nota da ebriedade se evidencia com os apelos confessionais e as dúvidas intermináveis, ninadas por espasmos loucos de teorização e especulações a respeito da Arte. Talvez, inócuos; talvez, brilhantes: “A Arte é a única história particular possível”.
A (des)conversa lânguida e intermitente é também o suspiro frustrado de uma geração; reflexos em copos. Para coroar o vazio, surge na trama uma curiosa figura acidental: um jovem poeta mestiço, espécie de Rimbaud anônimo, conhecido do dentista. A presença do menino, habitante do esquecimento, e seus textos brilhantes embalam as noites perdidas.
Com sua prosa envolvente e ríspida, que dispensa penduricalhos, vampiros assépticos e pudicos, alquimistas e bruxas de butique, Bolaño nos oferta o incômodo, a consciência da culpa. Como nos textos inspiradores de Branquinho da Fonseca, não há ali espaço para fabulação. Só a experiência mundana é capaz de abalar os “vazios edifícios” da alma. Vale!

MIRANDA, Rafael Puertas de. Noites Perdidas. Jornal Mogi News, Mogi das Cruzes, 17 de Julho de 2011. Caderno Variedades, p. 03.

Candido, ou o pessimismo


Na última quarta-feira, o ilustre e admirável crítico literário brasileiro Antonio Candido de Mello e Souza (1918) abriu a 9ª Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP) com uma emocionante e bem-humorada conferência informal, onde recompôs, por intermédio de “causos”, as experiências vividas ao lado do poeta modernista brasileiro Oswald de Andrade (1890-1954), artista brasileiro homenageado pelo evento carioca com as típicas exposições e instalações descarnadas e insossas de sempre – para “inglês ver” (o que presta, querido leitor, indiscutivelmente, é o contato precioso com escritores, consagrados ou não, e amantes da Literatura; tendo como pano de fundo a deslumbrante e opressora arquitetura de uma cidade velha que embala sonhos).
 Também foram ricas as entrevistas cedidas pelo nonagenário crítico da Literatura Brasileira, que afirmou de forma contundente que sua vida intelectual estava completamente encerrada. Sua presença ali era justificada pela grande amizade com o poeta “Oswaldo”, construída, no passado, depois de uma breve e intensa celeuma literária: em 1943, Candido criticara severamente o poeta e este contra-atacou com um artigo violento (“Ele me chamou de mineiro malandro”).
Mesmo se esgueirando, ao admitir que já doou parte de sua biblioteca, que não tem lido nada de novo e que, por isso, não reconhecia os autores atuais brasileiros nem estrangeiros, suas declarações, inesperadamente, desembocaram numa análise desiludida e pessimista da crítica literária brasileira atual e sua iminente apatia: “[A atual crítica então não corre riscos?] Nenhum. A crítica universitária acadêmica é uma atividade extremamente segura, não tem risco. Os rapazes fazem tese sobre Machado de Assis, Jorge Amado, José Lins do Rego, Clarice Lispector. A pessoa pegar o livro e dizer ‘esse é bom, esse é ruim’, isso acabou” -; em suma, um delicado e bem direcionado tapa cujo estalo ressoou pelas tendas estilizadas de uma das grandes feiras dos empreendimentos editorais brasileiros que, a maneira dos críticos hipotéticos de Candido, não correm risco algum, preferindo autores consagrados encalhados a talentosos iniciantes.
Fosse Oswald vivo, convidaria todos os participantes do evento para a FLAP!, espécie de FLIP underground paulistana que está na sua 6ª edição, conta com a participação de mogianos e, sem sombra de dúvidas, tem alma. Vale!

MIRANDA, Rafael Puertas de. Candido, ou o pessimismo. Jornal Mogi News, Mogi das Cruzes, 10 de Julho de 2011. Caderno Variedades, p. 03.

Os homens, as mulheres e o frio


Todas as famílias têm esqueletos no armário. Esta é uma das premissas que instigam a meticulosa investigação do jornalista econômico Mikael Blomkivist, personagem central do grudento romance policial e/ou de suspense “Os homens que não amavam as mulheres” (Companhia das Letras, 2011), do autor sueco Stieg Larsson; livro (primeira parte de uma trilogia) que originou uma adaptação cinematográfica a ser lançada nas próximas semanas.
A trama, ganhadora do Prêmio Chave de Vidro (em 2006), meticulosamente engendrada, revela-nos os passos do perspicaz e quixotesco jornalista da revista Millennium, recrutado de maneira pouco convencional por Henrik Vanger, velho patriarca de um império industrial sueco, para solucionar um enigma escabroso.
Há mais de quarenta anos, o poderoso octogenário é atormentado pelo misterioso desaparecimento de sua sobrinha-neta (e possível herdeira), Harriet Vanger. O sumiço da jovem, seguido de assassinato (hipótese admitida como fato), ocorre durante um encontro familiar anual, realizado nas propriedades da família Vanger, na Ilha de Hedebyön, nas vizinhanças gélidas de Hedestad, em 1966 (Uma boa pedida para estes dias invernais mogianos!). Como se não bastasse a perda, cumprindo um singelo ritual caseiro estabelecido entre Harriet e o Tio-avô, desde que a menina tinha oito anos de idade, o respeitável empresário recebe uma flor emoldurada toda a vez que aniversaria, sem indicações do remetente.
A cada capítulo, somos apresentados a dados reais e estarrecedores que demonstram a forma como, na Suécia, os homens tratam o sexo oposto (“Na Suécia, 18% das mulheres foram ameaçadas por um homem pelo menos uma vez na vida”, “Na Suécia, 46% das mulheres já sofreram violência de um homem”, etc).
À primeira vista, tais índices representam mecanismos seguros de contextualização do enredo, mas servem também como crítica audaciosa a uma realidade social lastimável. Além de problematizar, tal tensão serve de estrutura, justificativa, a outra personagem marcante da narrativa: uma introvertida investigadora particular que foge aos padrões esperados pelo leitor assíduo de tal modalidade romanesca.
Enfim, “Vale”! Não são os métodos tradicionais de um Allan Poe, Conan Doyle ou Agatha Christie; nem a crueza encantadora de um Roberto Bolaño; muito menos a engenhosidade febril de um Umberto Eco; mas não chega, de maneira alguma, à incompetência, à mediocridade oportunista de um Dan Brown.

MIRANDA, Rafael Puertas de. Os homens, as mulheres e o frio. Jornal Mogi News, Mogi das Cruzes, 03 de Julho de 2011. Caderno Variedades, p. 03.

Poeta, barbière i soldato

A cidade de São Paulo, no início do século XX, fervilhava: modernistas alvoroçados, universidades mascando estudantes de todo Brasil, imigrantes oriundos das mais diversas partes do globo em busca de um futuro melhor, as máquinas, os fios... Imagino, no meio deste burburinho, o jovem pindense Alexandre Ribeiro Marcondes Machado (1892-1933) desembarcando de um trem qualquer a fim de se formar em Engenharia na Escola Politécnica. Hipoteticamente, acompanho os passos do rapaz pelos bairros de operários repletos de imigrantes e deduzo o seu deslumbramento ao travar contato com o pitoresco dialeto macarrônico da italianada moradora do Brás, da Mooca, do Bixiga e do Belenzinho. Deslumbramento este que o levaria a elaborar uma das mais interessantes criaturas poéticas brasileiras: Juó Bananère.
Não se espante, querido leitor, se o nome lhe parecer estranho. Às vezes, a prática do insistente “didatismo engessado” nos presenteia com o esquecimento. Portanto, sacudamos o pó.
Satírico cruel, o escritor “encenou” um estilo humorístico inédito, empregando em suas poesias, crônicas e manifestos uma curiosa linguagem, espécie de mistura do português com o italiano. Extremamente sarcástico e dono de um humor inigualável, o eu-lírico (pseudônimo “quase” heterônimo!), dizem alguns, tornou-se mais famoso do que o próprio autor. Tal criatura, apresentada como poeta, barbière i soldato (além de “Gandidato á Gademia Baolista de Letras”), adorava sangrar com suas “lâminas ácidas” os figurões da época e demolia com paródias desconcertantes os “poemas medalhões” da literatura brasileira e estrangeira: uma delas, por exemplo, ataca a atmosfera de “Confeitaria Colombo” do Soneto Decassílabo Via Láctea”, emblema da face romântica do poeta parnasiano Olavo Bilac. Neste poema, encenando um suposto diálogo com um amigo, o eu-lírico de Bilac afirma que, ao contrário do que pensa o interlocutor, não perdeu o “senso”: consegue entender e ouvir estrelas porque “ama”; esta é a receita. Juó Bananère azucrina o texto, arrematando o mesmo diálogo com este engraçado terceto:

“(...)E io ti diró: − Studi p’ra intendela,
Pois só chi giá studô Astrolomia,
É capaiz de intendê istas strella.”

Infelizmente, seus livros foram pouco reeditados. “La Divina Increnca”, onde encontramos o texto acima, possui apenas três edições: a de 1915, 1966 (do editor Folco Masucci e que possuo) e a de 1994. Mas, felizmente, contamos com diversos sítios na Internet que divulgam a vida e a obra deste singular e criativo escritor brasileiro. Non Cotuca!!!! Vale!

MIRANDA, Rafael Puertas de. Poeta, barbière i soldato. Jornal Mogi News, Mogi das Cruzes, 26 de Junho de 2011. Caderno Variedades, p. 01.
LINKS:
1. Sóle Mio -  Voz de Juó Bananére, 1933:
http://www.carbonoquatorze.com.br/versaopaulo/primeiro/mp3/Track1.mp3

quinta-feira, 24 de maio de 2012

Pessoa em palavras

No início desta semana, sabedores que são do meu extremo apreço pela obra do poeta modernista Fernando Pessoa, vários alunos me abordaram com uma enxurrada de perguntas, motivadas pela singela homenagem do sítio de buscas “Google” ao 123º aniversário de nascimento do inventivo escritor português (Doodle abaixo). Alegrei-me.


Fernando António Nogueira Pessoa (nascido em 13 de Junho de 1888) é, incontestavelmente, um dos maiores poetas e escritores da língua portuguesa e nunca deixou (ou deixará) de despertar o interesse renovado de leitores apaixonados, críticos atentos e estudiosos astutos do mundo todo. Cabe destacar, ainda, que nosso país sempre desempenhou um papel fulcral e admirável na recepção crítica do autor de Mensagem.
Recentemente, como espécie de celebração ao esforço intelectual tupiniquim, o senhor José Paulo Cavalcanti Filho lançou, com muito alarde, a obra Fernando Pessoa, uma quase biografia (Editora Record) apresentada como o único texto biográfico pessoano escrito por um brasileiro e talvez o mais completo, o definitivo.
Em poucas semanas, o livro se esgotou nas prateleiras. Quando li as teimosas declarações do advogado pernambucano a respeito de sua obra, “quase” tive um colapso: “Fernando Pessoa é o menos imaginativo dos poetas; não tinha imaginação, tudo o que escreveu estava a sua volta” (O que é Intuição?), “reduzi os adjetivos e utilizei, em média, três vírgulas antes do ponto final, assim como Fernando em seus escritos” (?). Além disso, resolveu remodelar/distender o conceito de heterônimo, ampliando o número de “personas” criadas pelo português (não seriam 72, mas 127; seguindo sua nova teoria). O querido leitor já supõe (e não está errado) que resolvi ignorá-lo.
Mas, a velha compulsão bateu à porta e, num arroubo, apossei-me de uma segunda edição do alardeado livro. A bibliografia disponibilizada é completa e vale: lá estão listados textos raros a respeito do poeta. Quanto ao conteúdo, pouco surpreendente. Ademais, fica o ressaibo: não gostei nada do tratamento dado a professora Yvette Centeno, autora de “A filosofia hermética na obra de Pessoa” (entre outras); a respeito da filiação ou não do poeta às tradições do Rito Alquímico. As reservas continuam.
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Não encontro palavras que exprimam o profundo agradecimento pela receptividade dada ao meu texto anterior pela Professora Ivone Marques Dias de cujo trabalho intelectual sou um grande admirador. Como é difícil transformar a sincera estima pela pessoa em palavras.

MIRANDA, Rafael Puertas de. Pessoa em palavras. Jornal Mogi News, Mogi das Cruzes, 19 de Junho de 2011. Caderno Variedades, p. 03.