segunda-feira, 1 de abril de 2013

Da inocência

No posfácio da polêmica e complexa obra Lolita (1955), intitulado “Sobre um livro chamado Lolita”, o escritor e crítico literário russo Vladimir Nabokov (1899-1977) põe o leitor a par das agruras vivenciadas por ele, enquanto ainda procurava uma editora que se interessasse pela publicação daquele que viria a se tornar um dos romances mais constrangedores e bem construídos de todos os tempos.
Naquela época, década de cinquenta, a publicação de um livro que apresentasse um pedófilo (ou “ninfolepto”, como a personagem justifica eufemisticamente a sua própria obsessão – termo forjado pelo próprio Nabokov) concretizando suas vontades e ainda dotado de um discurso insinuante capaz de desnudar a hipocrisia moral, relativizando os bons costumes norte-americanos, era praticamente inviável (a narrativa só fora publicada na América em 1958). Ainda hoje, Lolita desperta amores e ódios, perplexidade e repulsa, por vezes, de forma concomitante. Não há como sair ileso.
No Brasil, a obra ganhou uma celebrada tradução em língua portuguesa, levada a cabo pelo literato Jorio Dauster, que, respeitando os procedimentos estilísticos do escritor russo (“Lolita, luz da minha vida, labareda em minha carne. Minha alma, minha lama”), presenteou-nos com a musicalidade e poesia de suas construções.
Acompanhamos espantados, quando mergulhamos na obra, as lembranças angustiantes do professor Humbert Humbert que, ao alugar um quarto numa destas típicas cidades ermas e esquecidas do interior dos Estados Unidos, conhece a filha da senhoria, uma menina de doze anos chamada Dolores, cujo apelido é Lolita. Enquanto convive com a garota, o narrador em primeira pessoa (não confiável, diga-se de passagem) e protagonista enxerga, em cada movimento da garota, uma insinuação. Em determinada altura da narrativa, o destino possibilita que Humbert se “aproprie” da criança. Mas é também o fado que a arrancará das mãos de seu violentador. Não há final feliz.
Há poucos dias, o colunista João Pereira Coutinho, da Folha, anunciou em um artigo o que para ele seria uma “recente polêmica” acerca da obra, mas que, na verdade, circula pelo meio literário há algum tempo: a localização de um conto, publicado em 1916 pelo desconhecido escritor alemão Heinz von Lichberg que, além de possuir um enredo semelhante (a jovem desta narrativa, no entanto, é decidida, “amaldiçoada” e espanhola), também se intitula “Lolita”. No mesmo texto, Coutinho apresenta a tese do neurocientista Oliver Sacks para o caso: na verdade, Nabokov foi alvo de um fenômeno cerebral denominado "criptomnésia". Neste processo, a própria mente esquece as fontes e constrói sua própria “originalidade” sobre elas.
Desconcertante. Esquecem-se ambos de que a Literatura é espaço comum para estes fenômenos intertextuais e de que um intelectual da envergadura de Nabokov, afeito à análise literária, jamais se esqueceria de uma referência tão evidente (nem se estivesse alocada na “outra margem da memória”). Pensar o contrário é muita inocência. O escritor russo, como costumamos sentenciar nas plagas tupiniquins, “deu um gato”, apropriou-se da estória alheia, e pronto.

MIRANDA, Rafael Puertas de. Da inocênciaJornal Mogi News, Mogi das Cruzes, 17 de Março de 2013. Caderno Variedades, p. 07.

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