domingo, 8 de setembro de 2013

Da amizade

 
Mário de Andrade. Desenho: Odiléa Setti Toscano
 
          No interessante ensaio intitulado “O Ateneu”, publicado em 1941 e, em seguida, agregado à obra “Aspectos da Literatura Brasileira”, o crítico e poeta modernista brasileiro Mário Raul de Moraes Andrade (1893-1945) demonstra sua inquietação diante do fato de que, no referido romance de Raul Pompeia (1863-1895), retrato da vida colegial do narrador protagonista Sérgio (e espécie de vingança do próprio autor contra o seu internamento no colégio Abílio, nos tempos de estudante), predomina um insuperável, trágico e absurdo traço conceptivo: a insensibilidade do escritor fluminense ante a idade da adolescência e o sentimento de amizade.
          Manifestando um temperamento atormentado e polêmico, Raul Pompeia, que poria um fim à própria vida aos trinta e três anos de idade com um tiro certeiro no coração, sempre se esquivara das pessoas e, segundo Mário de Andrade, daí se originaria sua “insensibilidade” diante desse sentimento:
“Parece hoje verdade assentada que Raul Pompeia não teve nenhum amigo íntimo, que lhe frequentasse a casa e a alma nua. Só teve ‘amigos de rua’, diz Eloy Pontes. Rodrigo Otávio, que morou paredes meias com ele, conta que tinham ambos, de sacada a sacada, conversas longas(...). E viveram tempos nesse lerolero sem que jamais Pompeia abrisse ao companheiro as portas de casa. E muito menos de seu coração.
Assim guardado, assim escondido em si mesmo, é possível que ele arrastasse consigo algum segredo mau, uma tara, uma desgraça íntima que jamais teve forças pra aceitar lealmente e converter a elemento de luta e de realização pessoal. E por isso, jamais poude conquistar para seu completamento e aperfeiçoamento, a sublime graça de um amigo íntimo. E o reflexo dessa falha está no Ateneu (...)”.
          Considerando a chave de interpretação sugerida por Mário, pode-se pensar exatamente o contrário em relação ao escritor português Eça de Queirós (1845-1900), que nos presenteou com os mais escaldantes exemplos de amizade disponíveis nas prateleiras dos cascudos romances realistas de fins do século dezenove. Assim o é a personagem Zé Fernandes, de A Cidade e as Serras, como também o "tronco de árvore", o Sebastião, o Sebastiarrão; amigo inseparável de Jorge n’O Primo Basílio.
          Ironias à parte, também faltou a Mário a tal “força” a ser convertida em elemento de luta: há fantasmas no (ar)mário. Entretanto, para o autor de Macunaíma não faltaram amizades verdadeiras.
 
MIRANDA, Rafael Puertas de. Da amizade. Jornal Mogi News, Mogi das Cruzes, 08 de Setembro de 2013. Caderno Variedades, p. 07.

Da "Teoria do Arroz"

 
          Certa vez, num de seus brejeiros e entusiásticos arroubos arrebatadores de discípulos, Monteiro Lobato sentenciara que a Literatura Brasileira passava por uma crise séria de “falta de vitamina”; avitaminose séria. Isto porque, segundo o pai da Emília, muito escritorzinho, com o intuito de fazer de suas páginas o suprassumo do acabamento da composição, despreza as “insignificâncias da língua viva”. Como resultado, as obras anêmicas desapareciam logo das prateleiras e seus apáticos autores amargavam fundo ostracismo.
          A fim de alinhavar a própria tese, coroando-a com situações históricas análogas, Lobato costumava citar a “teoria do arroz”, passagem célebre da biografia da Vitamina B: “Os holandeses de Java comiam o melhor arroz disponível, arroz polido, e eram devastados pelo beribéri, enquanto os nativos, que comiam arroz da pior qualidade, com película e tudo, desconheciam a moléstia. Até que especialistas descobriram que o preventivo da doença e mesmo o específico do tratamento estavam na casca desprezada do arroz”.
          Em seguida, cuspia sua conclusão, articulada nos seguintes termos: faz parte também dos nossos hábitos literários desprezar pequenos desvios da linguagem falada considerados inúteis e que, na verdade, comportam um grande poder vitamínico. Tanto limpamos o arroz que tiramos dele sua potência. Não há obra literária, portanto, que resista a tanta fraqueza, sobretudo aquelas que apresentam “boa aparência” e conteúdo linguístico ralo.
          Espertalhão, basta uma ligeira espiada em sua obra “adulta” para que se conclua que o pai do Jeca peneirava bem a própria língua. Portanto, a receita sugerida aos colegas fora por ele bem desprezada.
          O tempo passou e o emprego da língua viva na literatura brasileira assentou-se. Se ainda houver dúvida, basta sorver, numa destas noites frias, a nutritiva prosa de um João Guimarães Rosa, entre outros, inclusive, vivos que andam escrevendo por aí. A falta de viço, no entanto, ainda é marca de grande parte da produção contemporânea que circula entre nós e resulta menos de uma linguagem mais despojada do que de uma imprestável mania de se ausentar da realidade, de se ausentar do tempo.
          E isto contribui cada vez mais para o agigantamento do espectro de um Sousândrade, por exemplo, que, no século XIX, discernia todas as engrenagens da sociedade que o circundava e escrevia o “Guesa”, sem fuga, sem "sabiá". Vale!
 
MIRANDA, Rafael Puertas de. Da "Teoria do Arroz". Jornal Mogi News, Mogi das Cruzes, 18 de Agosto de 2013. Caderno Variedades, p. 07.


Do primeiro romance nacional II

 
 
          Alguns outros tantos críticos e historiadores da Literatura Brasileira validam o pioneirismo do romance “O filho do pescador”(1843), de Teixeira e Souza. Nelson Werneck Sodré, na sua História da Literatura Brasileira (seus fundamentos econômicos), destaca “Se deixarmos de parte duas ou três contribuições destituídas de importância e só a rigor abrangidas pelo gênero, verificaremos que o primeiro romancista nacional foi Teixeira e Souza”.
           Antônio Cândido, na obra Formação da Literatura Brasileira (Momentos Decisivos), concorda com o pioneirismo da obra do “carpinteiro de Cabo Frio”, ao mesmo tempo em que expõe a baixa qualidade da literatura produzida pelo autor (no capítulo: “Sob o signo do folhetim: Teixeira e Souza”, da referida obra): “Ele representa (o folhetinesco), com efeito, em todos os traços de forma e conteúdo, em todos os processos e convicções, nos cacoetes, ridículos, virtudes”. Também, José Aderaldo de Castello e Luiz Roncari validam a posição do romance.
          Todos os críticos até aqui mencionados, unanimemente, indicam a consagrada obra “A Moreninha” (1844), do Doutor Joaquim Manuel de Macedo, romance muito mais bem acabado, como o segundo do panteão nacional.
          Não sei se o querido leitor se lembra, mas o assunto, “remoído” no percurso anterior, veio à tona em uma teimosa discussão literária de final de tarde e, agora, explico-a. Um amigo das Letras deitara em minhas mãos um caprichado trabalho de sua autoria a respeito da obra “A Divina Pastora”, do escritor porto-alegrense José Antônio do Vale Caldre e Fião.
          A referida narrativa, publicada no Rio de Janeiro em 1847, com o subtítulo “Novela Rio-grandense”, sufocada pelo esquecimento ou vítima de alguma tramoia, desapareceu de nossas prateleiras, sendo redescoberta apenas em 1992 por um livreiro gaúcho, no Uruguai e, no mesmo ano, republicada. Na mencionada pesquisa, a obra é apresentada como o segundo romance da História da Literatura Brasileira, ficando atrás apenas de “A Moreninha”. O leitor pode imaginar o meu espanto. Orientei o colega que me jurou ter executado uma pesquisa acurada em sites diversos. Acabrunhado, decidi visitar alguns dos sites mencionados e, para meu espanto maior, lá o erro se repetia de forma estrondosa.
           Como diria o outro “No Paraguai, a história do Brasil é outra!”, e parece-me que também no Rio Grande do Sul, a história da Literatura Brasileira não é a mesma.
 
MIRANDA, Rafael Puertas de. Do primeiro romance nacional II. Jornal Mogi News, Mogi das Cruzes, 04 de Agosto de 2013. Caderno Variedades, p. 07.

Do primeiro romance nacional I

 
          Ainda há pouco, numa destas conversas literárias empolgadas que acabam resfolegando sobre o desfiladeiro teimoso das horas, lembro-me bem de citar o pitoresco artigo: Teixeira e Sousa: “O filho do Pescador” e “As Fatalidades de Dous Jovens”, do ilustríssimo e saudoso crítico literário, o senhor Aurélio Buarque de Holanda Ferreira (1910-1989).
          O Artigo mencionado pode ser encontrado numa republicação de 1977, pelas Edições Melhoramentos, do romance romântico “O filho do pescador”, de Teixeira e Sousa (1812-1861), lançado originalmente no ano de 1943 e, por isso, considerado o primeiro “romance” brasileiro.
          Buarque, no seu texto, apresenta de forma didática a evolução da polêmica em torno de qual narrativa de nossa história literária nacional poderia ter inaugurado a prática romanesca. Explica que, durante muito tempo, Teixeira e Souza fora considerado o pai do romance em nossas plagas. Críticos da envergadura de um Sílvio Romero (“tacitamente”), de um José Veríssimo e Ronald de Carvalho (“de maneira expressa”), sempre validaram a referida primazia. O Sr. Afrânio Peixoto atribuía a Nuno Marques Pereira, com o seu “O Peregrino da América” o direito de precedência; tese que Veríssimo esculachava, haja vista que a referida obra não poderia ser identificada com o gênero Romance (“obra de moral e edificação religiosa”).
          Narrativa que por ventura poderia destituir Teixeira seria “As Duas Órfãs”, publicada em 1841 e batizada pelo próprio autor (Joaquim Norberto) como romance. A narrativa, no entanto, não excede quarenta páginas, sendo, portanto, confortavelmente classificada pela crítica como uma Novela.
          Tentativas anteriores havia — de Pereira da Silva (Jerônimo Corte Real, 1839) e de Varnhagen (Crônica do Descobrimento do Brasil, 1840) — as quais tampouco se identificam com o caráter ficcional da narrativa romanesca.
          Ainda, Buarque relata que, em 1938, o português Ernesto Enes, num, ensaio atestara a existência do romance brasileiro em meados do século XVIII, quando saíram as “Máximas de Virtude e Formosura”, de autoria da paulista, radicada em Portugal, Teresa Margarida da Silva e Orta. A obra, segundo Buarque, não reflete nosso meio. A distinta senhora, então, deve ser observada como autora portuguesa. “(...) O mestiço de Cabo Frio”, vaticina, “é que dá começo à história do nosso romance — do romance brasileiro, situado no Brasil”. (Continua)
 
MIRANDA, Rafael Puertas de. Do primeiro romance nacional I. Jornal Mogi News, Mogi das Cruzes, 21 de Julho de 2013. Caderno Variedades, p. 07.

Da cultura caipira



Casa Caipira (década de 80), pintura a óleo de Mário Caserta (1920-2004)
Acervo de Rafael Puertas de Miranda - Mogi das Cruzes (SP).
 
          Em 1872, era publicado, o primeiro dos quatro pequenos volumes que viriam a constituir o pitoresco romance “Til”, do escritor cearense, radicado no Rio de Janeiro, José Martiniano de Alencar (1829-1877).
          Filiado à estética do Romantismo, mas sem abdicar de uma linguagem tipicamente brasileira (a acentuação do título “Senhora” – “ó” –, por exemplo, escandalizou os artistas da metrópole, defensores ferrenhos do beletrismo português), Alencar entendia o fazer literário como forma de construção de uma identidade cultural brasileira. Para dar cabo desta tarefa, seus textos procuraram dar ênfase aos valores e à cultura de cada um dos espaços geográficos de nossa nação.
          Foi assim que, em meados de 1871, resgatando as próprias memórias do período em que frequentou o curso de Direito do Largo de São Francisco, em São Paulo, onde travou contato com a cultura fazendeira/caipira do interior do nosso estado, Alencar começou os rascunhos de “Til”: “É o Til desses livros que se compõem com material próprio, fornecido pela reminiscência, e que portanto se podem escrever em viagem, sobre a perna, ou num canto da mesa de jantar” (in: Guerra dos Mascates).
          Dentro de sua respeitável obra, este romance “regionalista”, ou “sertanejo”, ou “fazendeiro”, desempenha um papel evidentemente secundário. Falta-lhe o brio de narrativas mais amarradas, falta-lhe a prosa poética de “Iracema” (1865).
          Mesmo assim, evidenciam-se duas qualidades admiráveis. A primeira apresenta-se na diversidade singular da numerosa galeria de personagens que a obra comporta. Em “Til” esbarramos com transfigurações locais dos principais “modelos” consagrados pelo romantismo europeu, fazendo-se notar uma espécie de escala gradual/moral que vai da abnegação total à psicopatia vingativa: o anti-herói resignado, o personagem grotesco para além do bem e do mal, a heroína apaixonada, o típico herói eticamente irrepreensível, o jovem Don Juan/aventureiro, a viúva prestativa, o vilão canastrão etc. Berta (ou Inhá, ou Til – como é apelidada por “Brás”), a protagonista da história, incorpora a típica heroína abnegada e altruísta, beirando a santidade: e não há quem diga que “Deus escreve certo por linhas tortas?”, Deus escreve certo por "~" (til).
          A segunda é a naturalidade e entusiasmo com que o autor nos apresenta os aspectos folclóricos (festas, folguedos, cantigas, costumes), entrelaçando-os ao enredo. Vale!
 
MIRANDA, Rafael Puertas de. Da cultura caipira. Jornal Mogi News, Mogi das Cruzes, 07 de Julho de 2013. Caderno Variedades, p. 07.

Na Lata, de Frederico Barbosa

 
Frederico Barbosa (1961-)
 
          Escreveu certa vez o poeta francês Paul Valéry (1875-1945): “Nada há de mais original, nada de mais pessoal do que se alimentar dos outros. É preciso, porém, digeri-los. O leão é feito de cordeiro assimilado”. Atentando para as peculiaridades desta sentença, deve-se, portanto, ao analisar a obra poética de determinado autor, também estar atento às transformações que o mesmo impõe a seus “empréstimos”. Onde se lê “influência”, lê-se muita vez interpretação, reação, resistência, atualização, combate. Todo esse processo coroado com o distanciamento do pedantismo barato e superficial a fim de que se construa uma nutrida e sincera dicção poética. Eis a receita da boa poesia contemporânea que circula entre nós.
          Ajusta-se a mencionada chave à recém-publicada obra “Na Lata” (Ed. Iluminuras), que comporta a poesia reunida (de 1978 a 2013) do poeta/performer  e entusiasta da literatura pernambucano, radicado em São Paulo, Frederico Barbosa (1961-). Renegando uma ordenação cronológica de sua trajetória artística literária, que por ventura limitasse a potência expressiva de seus textos, optou o poeta pela original divisão e mistura de todos os seus poemas em distintos blocos temáticos, ressaltando, desta forma, os possíveis diálogos entre as peças (algumas, inclusive, retocadas e revisadas). O resultado da façanha é a completa anulação de uma perspectiva temporal que dá a edição o caráter de ineditismo: “um livro absolutamente novo”, segundo o autor.
 
 
          Ao mergulhar em seus versos, deparamo-nos com o espírito da conduta construtiva de João Cabral de Melo Neto, os espectros da poesia concreta, as imagens pesadas de Eliot, os ecos da prosa poética de James Joyce, a insolência sensual e os arroubos formais de Gregório de Matos, a deglutição dos experimentalismos oswaldianos (fractais), a musicalidade sugestiva dos simbolistas, a dimensão febril de Fernando Pessoa, a pedra rala de Drummond, as folhas da relva, a música popular brasileira, “o oco sem beiras”.
          O reconhecido esmero do poeta na construção de uma linguagem e estrutura a serviço de um “eu” inquieto (inquietação digna de um “siri na lata”, como diriam os caiçaras sabidos) nos arrasta ao olho do furacão de uma realidade liquefeita, teimando convulsão e resvalando no caos (portanto, “Tapa na cara dos reaças!”). Enfim, obra imperdível que deve habitar prateleiras de livrarias que desejam escapar da fama de ordinárias. Vale!
 
MIRANDA, Rafael Puertas de. Na Lata, de Frederico Barbosa. Jornal Mogi News, Mogi das Cruzes, 23 de Junho de 2013. Caderno Variedades, p. 07.