Desde que a crítica estadunidense Helen Caldwell publicou, na década de 1960, o inusitado livro: “O Otelo brasileiro de Machado de Assis”, uma verdadeira onda de acólitos, estrangeiros e nacionais, abraçou, nos anos que se seguiram, a causa da plena absolvição da personagem Capitolina, acusada de adultério descarado pelo próprio marido, Bento Santiago, no romance “Dom Casmurro (1899)”, de Machado de Assis.
Segundo Helen, o brasileiro comum, vítima de uma mentalidade contaminada por uma estrutura tipicamente patriarcal, machista, tende a enxergar a promiscuidade onde não há e o problemático e obsessivo narrador personagem do romance não merece a mínima confiança. Consolidou-se, desta maneira, a hipótese rala de que não houve traição, para desespero de muitos dos guardiões de nossas letras.
Em verdade, desde as primeiras páginas de Dom Casmurro, somos apresentados a um Romance “Omisso"; repleto de lacunas a serem preenchidas segundo as orientações de um homem traído. Vários críticos contemporâneos de Machado, entre eles Arthur de Azevedo, repercutiram o lançamento da referida obra, destacando-a como uma empolgante história de traição e o Bruxo do Cosme Velho, que era profundamente cioso de seus textos, nunca escreveu nada a respeito destas análises, desmentindo-as, satirizando-as. Àquela altura, a personagem era tratada como uma traidora.
A atrevida Capitu, filha de “Pobres-Diabos”, sabe que deve, a todo custo, “entrar” para a casa da endinheirada família Santiago; prover sua ascensão social. Num primeiro momento falha, pois Bentinho, executando a promessa da mãe (falta iniciativa ao coitado para negar sua sina infeliz), interna-se num seminário.
Quando tem a oportunidade de retornar à casa materna, o rapaz se depara com uma Capitu inconfortavelmente travestida de “agregada”, fazendo pose de filha substituta na sala de D. Glória.
Adiante, a obrigação do seminário é contornada e a moça pode, enfim, livrar-se do fingimento e dedicar-se novamente ao projeto inicial. Agora, nada impediria o casamento dos dois enamorados. Chegara a hora de gozar a plena felicidade.
No entanto, para satisfação da sanha devassa do tempo que não costumava ignorar esse tipo de evento caseiro e constrangedor, dois anos escorrem e o casal não é capaz de gerar um filho. Esse desgosto os atormenta (ambos têm seus motivos); "nada corria bem".
Bentinho não é o primeiro tipo estéril da galeria Machadiana e ninguém melhor do que o autor realista para abordar tal assunto: Machado não teve filhos (dentro do casamento, segundo as más línguas).
E, assim, depois de muita espera e reza, nasce uma criança, seguida de uma suspeita, uma certeza, um exílio e, no fim, a solidão.
Depois desta exposição, espero que não me compreenda mal, querido leitor: Capitu é, surpreendente, moderna. Bem mais interessante e poderosa do que muitas mulheres que encontramos pela estrada à fora (ela torceu o próprio destino). Machismo, portanto, é atestar veementemente que uma moça tão autêntica, decidida, criativa, sedutora e extrovertida não trairia um homem tão esvaziado de iniciativa quanto Bento Santiago, um "boco-moco". Não duvidem: Capitu realizou-se. Ela nos olha.
MIRANDA, Rafael Puertas de. Capitu, adorável traidora. Jornal Mogi News, Mogi das Cruzes, 05 de Junho de 2011. Caderno Variedades, p. 03.
Magnífico!
ResponderExcluirconsigo imaginar esse texto em uma de suas aulas. Rs!
E segue atual seu texto, assim como a perspectiva do "brasileiro médio"...
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