domingo, 22 de julho de 2012

Da Partícula II

As duas definições capazes de explicar a origem do apelido da partícula recém-descoberta, o "Bóson de Higgs", não se excluem e, de fato, a fusão das duas nos oferece a explicação verdadeira: Lederman utilizou a analogia ao episódio bíblico da torre de Babel ("Ao mesmo tempo, há muitos milênios, muito antes da escrita destas palavras bíblicas, a natureza falava apenas um idioma") e, por isso, pensara num título/trocadilho "The God damn Particle" (Partícula Deus/Maldita), mas, sob orientação de seu editor, substituíra-o por "The God Particle". 
A explicação, no entanto, não justifica a bizarra versão do apelido, difundida com vigor pelos principais meios de comunicação: "A Partícula de Deus". Carregada de simbologia, a expressão ainda fora acoplada a "pacotões culturais". Um deles gerou estes artigos.
Virtualmente, um sujeito me disse que "agora que os cientistas localizaram esta partícula, serão capazes de construir uma bomba poderosíssima". Perguntei-lhe de onde lhe tinha vindo esta ideia e o mesmo me respondeu: "Por acaso você não leu Anjos e Demônios?". O indivíduo abandonou o "chat" sem me dar tempo de esclarecer a confusão. 
Acontece que, no famigerado livro "Anjos e Demônios", lançado no Brasil em 2003, o medíocre Brown, para justificar sua fraca trama, sequestra erroneamente o conceito de distinto campo da física: a "Antimatéria". Na obra, cientistas conseguem armazenar antipartículas e um vilão se apropria das mesmas a fim de utilizá-las como um poderoso explosivo. 
Em verdade, os cientistas já produziram algumas antipartículas, comprovando teorias científicas anteriores, e também é verdade que a mistura de matéria com antimatéria levaria ao aniquilamento de ambas, mas ainda não conseguimos armazená-las por mais de um décimo de segundo. Também, a expressão/versão "Partícula de Deus" aparece apenas uma vez na trama (quando Langdon observa a estante de um cientista e localiza nela o livro de Lederman). Na adaptação cinematográfica, a confusão ainda é maior. Ao assisti-la, tem-se por certo que a partícula aprisionada é a "partícula de Deus". Parece-me, portanto, que tanto os Deuses quanto as Partículas, dadas suas devidas concretudes, estarão sempre à mercê de interpretações equivocadas, tendenciosas e paranoicas, providas pela mesma contraditória força, quiçá a mais poderosa de todas, a mais bela e a mais indomável: que se apelida a "Mente Humana".

MIRANDA, Rafael Puertas de. Da Partícula II. Jornal Mogi News, Mogi das Cruzes, 15 de Julho de 2012. Caderno Variedades, p. 07.

Da Partícula I


Na última quarta-feira, enquanto a barulhenta torcida "Didelphis sp" (Gambá) comemorava o título inédito e enciumados esfarelavam pés de mesas com os próprios dentes, alguns curiosos ainda digeriam, embasbacados, o surpreendente comunicado oficial dos responsáveis pelo Centro Europeu de Pesquisa Nuclear (CERN), que, num seminário em Genebra, anunciara, na tarde daquele mesmo agitado dia, a verificação segura da descoberta de uma partícula possuidora das características previstas, na década de 70, pela difundida teoria do físico britânico Peter Higgs: estava descoberto o célebre "Bóson de Higgs". 
A façanha experimental, considerada a maior descoberta científica dos últimos cinquenta anos e que só fora possível graças ao aparato tecnológico conhecido pela sigla LHC (Grande Colisor de Hádrons - enorme acelerador de partículas construído sob a fronteira da Suíça e da França - espécie de túnel anelar com 27 km de extensão capaz de embalar prótons, quase à velocidade da luz, para que os mesmos se colidam e, como resultado dessa colisão, desdobrem-se em outras efêmeras partículas não conhecidas), em poucas horas, desencadeou discussões acaloradas na Internet. 
Acontece que a partícula, elemento fundamental para o entendimento da composição e do funcionamento da matéria visível no Universo (imagine, querido leitor, um grosso caldo de afogado; assim é o campo gerado pelo B. de H., com o qual as outras partículas interagem e que, por isso, determina - dita - a massa das mesmas), dada sua importância para compreensão científica das coisas como conhecemos (eu, você, uma abóbora, uma estrela, uma alface), acabou se embrenhando na cultura popular por intermédio de uma interpretação equivocada do apelido dado pelo físico americano Leon Lederman: "a partícula Deus".
Duas explicações divergentes para a origem do apelido foram divulgadas pela mídia impressa no dia seguinte: 
- a primeira afirma que Lederman, ao publicar o livro intitulado "The God Particle", tenha feito uma analogia à história bíblica da Torre de Babel: "Deus, furioso, faz com que todos falem línguas diferentes" - "B.H. faz partículas possuírem massas diferentes".
- a segunda afirma que o mesmo livro citado acima se chamaria "Goddamn Particle" (Maldita Partícula), porque ela nunca era detectada. Mas seu editor o convenceu a alterar o título para "God Particle".
(Continua - Não perca: Da Partícula II: e a Literatura?)

MIRANDA, Rafael Puertas de. Da Partícula I. Jornal Mogi News, Mogi das Cruzes, 08 de Julho de 2012. Caderno Variedades, p. 07.

A Cruzada das Crianças


Há alguns anos, enquanto perambulava distraído por Sebos paulistanos em busca de livros velhos para saciar minha fome de novidade, encontrou-me uma singular obra -e que o querido leitor se acostume com estas insistentes prosopopeias livrescas, inquietudes: para mim os livros espreitam, respiram. 
Tratava-se da belíssima 14º edição ilustrada da "História da Civilização", do digníssimo intelectual pernambucano Manuel de Oliveira Lima (1867-1928), publicada, em 1965, pelas Edições Melhoramentos (diga-se de passagem, uma das editoras responsáveis pela história do livro no Brasil -fundada em 1890). 
Diferente das enfadonhas e coloridas brochuras modernas, que não suportam um respingo ou uma dentada de cupim (que os biólogos me perdoem), o achado resistira ao tempo graças ao seu robusto acabamento e agora repousava em minhas mãos. Seu autor, bibliófilo célebre (reuniu o terceiro maior acervo de livros sobre o Brasil de que se tinha notícia nas primeiras décadas do século XX: perdia apenas para a Biblioteca Nacional e para a biblioteca da Universidade de São Paulo), aprovaria o formato.
Resultado de uma dedicada pesquisa histórica e lançada em 1919, a obra é uma espécie de compêndio muito bem organizado de eventos e também uma interessante reflexão sobre as civilizações e culturas apresentadas (entenda-se que a Quarta parte do livro, Idade Contemporânea, refere-se a eventos da época do autor). 
Enfim, desprezando o típico nojo da "data de validade vencida", uma bela companhia para matar o tédio das tardes cinzentas. E numa delas, avançando os dedos por sobre as encardidas páginas dedicadas à Idade Média, deparei-me com um tópico breve e curioso: o relato da Cruzada das Crianças, que, em 1212, contou com a participação de aproximadamente trinta mil pequeninos.
Rapidamente, tomei nota do movimento pitoresco e trágico, sabendo que poderia utilizá-lo como mote de algum texto. O texto não veio. 
Mas, pouco tempo depois, acabei me deparando com a fantástica obra "A Cruzada das Crianças"(1896), do francês Marcel Schwob (1867-1905). 
O livreto, publicado em edição bilíngue pela Ed. Iluminuras em 1987, fora traduzido por Milton Hatoum e é uma espécie de conjunto de relatos de possíveis protagonistas ou testemunhas de acontecimentos relacionados ao referido assunto. 
Crianças que se perderam e, às vezes, são os ratos do Gaiteiro de Hamelim. Vale!

MIRANDA, Rafael Puertas de. A Cruzada das Crianças. Jornal Mogi News, Mogi das Cruzes, 01 de Julho de 2012. Caderno Variedades, p. 07.

A troca e "O Barão"


Definitivamente, querido leitor, uma das atividades humanas mais prazerosas, praticada por teimosos entusiastas e admiradores do fazer artístico em suas mais diversas ramificações e modalidades (ou "culturalistas", como diria minha mestra), seja a entusiasmante "troca de referências".
Hoje, diversos são os multissemióticos meios (redes sociais, app´s, etc) que, além de competentemente promoverem a banalização da vida cotidiana por intermédio da construção de uma acolhedora hiper-realidade, promotora da indústria cultural de massa e responsável pela entronização da sanha pelo consumismo louco; talvez sejam capazes de ampliar as possibilidades deste tipo de experiência. No entanto, desconheço mecanismo mais significativo do que uma boa e simples conversa (olhos nos olhos), ao embalo do precário tempo que nos resta entre os espaços das horas alheias.
Assim, conheci diversas obras, indiquei outras tantas, (re)descobri autores, resgatei textos desconhecidos, revi certas posturas críticas enraizadas na minha formação, cresci. Amigos, se soubessem da minha imensa gratidão! Quis o acaso que não fossem raros os episódios desta natureza em minha vida. Como é vasto o "repertório culturalista" de nossa cidade (patrimônio humano!).
Pois então. Numa destes diálogos, um amigo me recomendou a Novela "O Barão" (1942), do escritor português Antônio José Branquinho da Fonseca (1905-1974). Alguns "Contos" do autor (como o magnífico "As mãos frias"), já haviam desfilado diante de meus olhos e seu nome decerto figurara em alguma "lousa perdida" sobre a Revista Presença. Mas, esta incrível "Novela", que, de forma simplória, é um gênero narrativo em prosa intermediário, escapara-me.
No texto, um curioso narrador personagem, inspetor de escolas de instrução primária, que viaja constantemente para dar cabo de suas funções, reconstitui os eventos relacionados a sua curta estadia numa cidade interiorana, quando, a convite de um temido e decadente Barão, hospeda-se em seu suntuoso solar. O nobre, sanhoso do contato com a civilização, envolvendo o visitante com um monólogo sôfrego, arrasta-o para uma etílica jornada, madrugada adentro, onde respostas ocultas se embrenham. 
A narrativa, sem experimentalismos, é carregada de ambiguidades. No plano simbólico, arquétipos interagem a fim de contrastar o passado com o presente; ruínas. 
Grande experiência literária! Vale!

MIRANDA, Rafael Puertas de. A troca e O Barão. Jornal Mogi News, Mogi das Cruzes, 24 de  Junho de 2012. Caderno Variedades, p. 07.

Ulisses, ou a balada do Sr. Bloom


Ontem, querido leitor, contrariando a lógica infalível das coisas importantes, o imediatismo teimoso das grandes lutas e a modorra silenciosa dos sábados em transe, alguns leitores e fãs brasileiros, sozinhos ou acompanhados, em bares ou no silêncio dos quartos, debruçaram-se uma vez mais sobre as páginas surradas, sejam elas novas ou encardidas, de alguma das edições daquele que é, sem sombras de dúvida, um dos Romances mais inovadores e belos do século XX, Ulisses (1922), do escritor irlandês James Joyce. 
A obra, que, a partir de 2012, entrou em domínio público (em breve veremos uma enxurrada de novas edições), é uma espécie de demolição do Gênero Romanesco, carregada de experimentalismos e profunda reflexão acerca da vida e do fazer literário. Com uma linguagem extremamente poética, truncada, carregada de neologismos, inovações sintáticas, somada ao emprego da técnica de fixação do "fluxo de consciência", por intermédio da qual se registra o pensamento integral de uma personagem - o raciocínio lógico ilhado de impressões e o acompanhamento paciente do processo de livre associação de ideias -; acompanhamos a saga de um dia (mais precisamente 18 horas) do Leopold Bloom, um judeu que vende anúncios. Espécie deslocada, pensador e alvo de todas as injúrias do mundo (profundamente humano, por isso), Bloom peregrina pela Dublin do início do século, atormentado pela memória do filho natimorto, causa aparente de sua infelicidade conjugal. A trajetória da personagem, típico anti-herói patético, dialoga e reconstrói a saga do herói homérico Ulisses e sua viagem de volta para Ítaca. No texto de Joyce, no entanto, o retorno adiado é o retorno para casa, para sua esposa Molly (Penélope). Durante o trânsito encontra o entusiasmante jovem Stephen Dedalus (Telêmaco), passando com ele algumas horas de seu dia. Este breve relacionamento "interafetivo", de estreita conciliação de angústias, culmina na experiência a três mais interessante e reflexiva de toda a Literatura: a divisão do leito conjugal (de Bloom e Molly) com o rapaz. A trama é arrematada com um atordoante desfecho: o célebre monólogo da senhora Bloom. Então, a importância da obra e a revolução promovida pela ousadia do escritor justificam plenamente a comemoração anual do "Bloomsday", que ocorre no aniversário da data no romance: 16 de Junho de 1904. Ontem, portanto. Vale!

MIRANDA, Rafael Puertas de. Ulisses, ou a balada do Sr. Bloom. Jornal Mogi News, Mogi das Cruzes, 17 de Junho de 2012. Caderno Variedades, p. 07.

Carta a Saramago


Antes de, propriamente, começar, quero explicar-lhe os motivos que me impeliram a esta empreita: sou um grande apreciador da Literatura que brota de suas mãos. A sua vasta galeria proporcionou-me diversas experiências de significado e compreensão com ressonâncias interiores edificantes. 
Bem jovem, já visitava assiduamente os seus escritos e muitas foram as vezes que cheguei a desconfiar de minha real existência, imaginando-me uma criatura sua, dadas as coincidências constantes entre os medos e angústias de seus personagens e os meus próprios. "Ora (pensará), um personagem meu? De certo perdeu o senso!" e eu lhe direi, no entanto, que muitas vezes, pálido de encanto, percebo-me inaugurar com sua escrita. Acho, inclusive, que cada leitor seu é também uma personagem desgarrada em busca de não sei o quê. 
Tudo isto, acredito, só é possível graças a sua capacidade artística. Sempre, uma metáfora sua fala mais sobre o mundo e suas duras discrepâncias de que uma sisuda e banal notícia que se transmuta em nada rapidamente. Mas seu exemplo extrapola: não basta a denúncia para um mundo que inventa insistentemente a morte. 
Isto posto, confesso que há muito tempo sou assaltado pela ideia fixa de desencadear este diálogo contigo (sabendo de seus compromissos), enviando-lhe uma carta que fosse, antes de tudo, um abraço fraterno (muitos brasileiros o admiram) e, principalmente o pagamento de uma dívida humana: que minhas palavras, brejeiramente anônimas, trevas nas luzes dos bytes, proporcionem um pouco da alegria que já vivenciei com as suas. Obrigado!
Agora, continuo pela tarde que velha um azul-província, respirando o plástico sacrificador de vontades nosso de cada dia, enquanto canteiros floridos teimam olhares brejeiros, as reclamações continuam as mesmas e as pessoas se desentendem sem imaginar a razão.Então, desafiando as leis terrenas das probabilidades, as sinas sinistras dos desencontros e as reentrâncias do fado, envio-lhe por fios estas palavras, José, tão resistentes como a sombra de um elefante e tão errantes como Caim; que te encontrarão, quem sabe, numa destas nubladas e chuvosas manhãs, quando o tédio se assemelha a um moscardo, pairando sobre as pessoas, sempre, cansadas. Oxalá as receba e o destino se cumpre.
***
Esta carta fora enviada ao escritor José Saramago, em 2010, meses antes de sua morte, em junho do mesmo ano.

MIRANDA, Rafael Puertas de. Carta a Saramago. Jornal Mogi News, Mogi das Cruzes, 10 de   Junho de 2012. Caderno Variedades, p. 07.

O Mestre da "comborçaria"

Anônimo. Machado de Assis, c. 1880 / Acervo Academia Brasileira de Letras.
No ano de 1999, depois que o escritor carioca Carlos Heitor Cony começou a divulgar o resultado de suas pesquisas sobre crônicas fofoqueiras do final do século XIX, aventou-se a possibilidade de que Mário Cochrane de Alencar não seria filho do romancista José de Alencar, pai de "Iracema" (1865). 

Mário, talentoso escritor e epilético, na verdade, seria fruto de uma relação extraconjugal entre a mulher de Alencar, Georgiana Cochrane, e o jovem escritor Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908). Na época, sugeriu-se uma nova chave para a interpretação do romance "Dom Casmurro" (1899), escrito por Machado na maturidade, enxergando-o como uma espécie de veículo de expiação, biografia ficcionalizada.
Se "corneou" ou não o amigo (e acredite, querido leitor, há registro de que Machado tenha traído até a própria esposa), o futuro nos dirá. Certo é, no entanto, que nenhum outro escritor de nossas letras esmiuçou com tanta competência e profundidade a "comborçaria", desnudando a dinâmica das relações burguesas, em fins do século XIX. Vale!

À guisa de breve roteiro, apresento abaixo alguns dos imperdíveis atos de traição machadianos:
- O triângulo amoroso entre Rita, Camilo e Vilela apresentado no conto "A Cartomante". Na história, os amantes (Rita e Camilo), depois de descobertos, são assassinados por Vilela.

- A admissão resignada da traição, no conto "A Missa do Galo". Conceição é casada com Meneses e este a trai semanalmente (diz que vai ao teatro - "eufemismo em ação"), mas não a engana.
- No conto "Último Capítulo", Matias, depois de ficar viúvo, descobre que a inexpressiva e bondosa mulher, D. Rufina, o traia com seu amigo Gonçalves. Matias decide, então, tirar a própria vida. 

- Maria Olímpia, a protagonista do conto "A Senhora do Galvão", prefere descartar as evidências, negando o óbvio envolvimento de seu marido, o senhor Galvão, com a viúva "Ipiranga", Madame Tavares. Mas, por inveja (a outra compra antes uma joia que Olímpia paquerava há muito tempo), decide enfrentá-la. É salvo o casamento.
- No romance "Memórias Póstumas de Brás Cubas", Lobo Neves desconfia, mas não descobre a traição de Virgília. O ilustre comborço defunto, Brás Cubas, engravida a amante, porém esta perde o filho. O caso deixa marcas profundas.
- Em "Dom Casmurro", Capitu com seu olhos de "Caipora" engana Bento Santiago, traindo-o com o próprio amigo, Escobar.

MIRANDA, Rafael Puertas de. O Mestre da "comborçaria". Jornal Mogi News, Mogi das Cruzes, 03 de Junho de 2012. Caderno Variedades, p. 07.

Da Genética do Texto


Em 1972, o belga Philipe Leon Marie Ghislain Willemart concluía sua graduação em Letras (Língua e Literatura Francesa) na Universidade de São Paulo. 
Hoje, pós-doutorado pela mesma instituição, é considerado um dos mais respeitáveis estudiosos da literatura Proustiana no Brasil e também o introdutor de uma nova linha de investigação literária denominada "Crítica Genética", que, afim de consolidar uma teoria da escritura, é direcionada à análise minuciosa dos processos de criação dos grandes escritores, mapeando suas peculiaridades, sua dinâmica.
Willemart, que coordena o Laboratório do Manuscrito Literário (LML), o Núcleo de Apoio à Pesquisa em Crítica Genética (NAPCG) e o Centro de Estudos Proustianos, fora responsável também pelo projeto temático FAPESP "BRÉPOLS brasileiro" (2007-2011) que avaliou/investigou determinados cadernos manuscritos "caóticos" do espólio do escritor francês Marcel Proust (1871-1922); a pesquisa contou com a participação de estudiosos franceses, japoneses e brasileiros.
O resultado do referido trabalho conjunto, uma edição crítica de todo o material com transcrição integral, fac-símile de cada página e notas explicativas a ser publicado pela prestigiada editora belga BRÉPOLS, ainda não tem data de lançamento no Brasil.
Entre os destaques aflorados pelo projeto, encontra-se a brilhante tese defendida pela professora da UNESP (Assis) Carla Cavalcanti e Silva, que localizou o destino de quarenta páginas arrancadas pelo escritor do caderno 53, que constitui parte considerável da série "Em busca do tempo perdido", obra romanesca escrita entre 1908-22 e publicada entre 1913-27, em sete volumes.
Marcel Proust, para o terror daqueles que eram responsáveis pela transcrição de seus manuscritos, utilizava estes cadernos - miseau net - como rascunhos, praticando uma escrita não linear e, também, por vezes, arrancava páginas a fim de alocar trechos escritos em outros cadernos, em "alturas" diferentes" do texto final.
Esta investigação lança novas luzes à interpretação da obra (pode, inclusive, a relevante pesquisa, contestar o caráter autobiográfico da obra máxima de Proust, tradicionalmente classificada como um "roman à cléf", quando observa que a escolha da narrativa em primeira pessoa é tardia - o próprio escritor questionava a leitura tradicional) e amplia o prestígio brasileiro neste sedutor novo campo de pesquisa. 
Vale!

MIRANDA, Rafael Puertas de. Da Genética do Texto. Jornal Mogi News, Mogi das Cruzes, 13 de Maio de 2012. Caderno Variedades, p. 07.

Geografias


A cinco voos

Escuro ainda,
o pássaro desconhecido senta-se em seu costumeiro galho.

O pequeno cão da vizinhança ladra em seu sono
interrogativamente, somente uma vez.

Talvez em seu sono, também, o pássaro indague
uma ou duas vezes, trinando trêmulo.

Questões - se isso elas são -
respondidas diretamente, simplesmente,
durante o próprio dia.

Enorme manhã lenta, meticulosa;
Luz pálida riscando cada ramo nu,
Cada fino graveto, perfilado,
Fingindo outra árvore, de vítreas veias...

A ave ainda está lá. Agora parece bocejar.

O pequeno cachorro preto corre em seu terreiro.

A voz de seu dono surge, austera,
"Você devia ter vergonha!"
O que ele fizera?
Ele salta alegremente para cima e para baixo,
ele corre em círculos nas caídas folhas.

Obviamente, ele não tem noção do ridículo.

Ele e o pássaro sabem estar tudo resolvido,
todos os devidos cuidados,
não há necessidade de perguntar novamente.

― Ontem nasceu hoje tão brevemente!
(A de ontem acho quase impossível levantar.)

Versão metida à tradução do Poema "Five flights up", de Elizabeth Bishop - Maio, 2012.


O poema acima pertence ao livro "Geography III" (Editora Farrar, Straus and Giroux - 1976), última obra da escritora americana Elizabeth Bishop (1911-1979), uma das grandes vozes poéticas do século XX. 
O livro, marcadamente autobiográfico, é considerado por muitos críticos como o seu trabalho mais vigoroso. Nele, evidenciam-se as características marcantes de uma poesia que se debruça sobre singelos episódios do cotidiano, extraindo, dos mesmos, intenso lirismo.
Verdades emocionais com uma linguagem cheia de exatidão.
Bishop viveu no Brasil cerca de vinte anos. Enquanto aqui esteve, na década de 50, registrou os principais eventos de natureza política que chacoalharam nossa sociedade. Como gostava de pintura, algumas de suas obras catalogadas retratam cenas rurais brasileiras.
Vale!

MIRANDA, Rafael Puertas de. Geografias. Jornal Mogi News, Mogi das Cruzes, 06 de Maio de 2012. Caderno Variedades, p. 07.

Encontros


As ideias fundamentadas pelo filósofo espanhol Afonso López Quintás (1928) são destrinchadas e comentadas pelo seu atento interlocutor brasileiro, o Doutor Gabriel Perissé, na obra "A Leitura das Entrelinhas: Método Lúdico-Ambital" (ESDC, 2006). Na referida obra, é apresentado o método que propõe uma "leitura mais aprofundada de textos literários ou de outras naturezas".
Além de expor as teorias do pensador espanhol, Perissé apresenta, subvertendo o Cânone, a prática desta "Leitura Profunda" em ensaios bem elaborados acerca de três obras diferentes: "Laranja Mecânica", de Anthony Burges, "A Metamorfose", de Kafka e "Naquela Noite", de Sérgio Bittencourt.
Uma das partes mais interessantes do texto é a explanação a respeito de um conceito que, além de constante na obra de Afonso Lópes, segundo Perissé, é decisivo para o entendimento do pensamento do teórico: a ideia do encontro como traço definidor do ser humano. Este "ser de encontro" aproxima-se da sabedoria e humaniza-se somente quando vivencia formas "elevadas" de relação com aquilo que o circunda, incluindo-se aí as obras de arte literárias. Com o passar do tempo, a relação estabelecida com um texto prenhe de literariedade passa por uma espécie de depuração. Para tanto, devemos aperfeiçoar esse vínculo, temperando-o com cultivo, paciência, generosidade e a prática de uma busca positiva (acrescentaria, incansável). Neste momento, a compreensão de uma realidade até aquele momento inacessível à inteligência se manifesta.
E como acontece o "encontro"? O encontro é um evento criativo que demanda, de seus persistentes protagonistas, iniciativa e, sobretudo, predisposição para o diálogo. É claro, leitor, que o livro como objeto físico é esvaziado de vontade, mas aquelas obras ricas que se apresentam como desafio não são, segundo os estudiosos, meros objetos: tornaram-se "âmbitos". Estes livros chamam por nós. 
***
No próximo sábado, dia 29, na bela cidade litorânea de São Sebastião, Maria Angélica de Moura Miranda, minha mãe, realiza a XVIIª Edição de seu projeto/exposição+evento: "Encontro Regional de Autores", onde reúne os escritores do Litoral Norte recém-publicados. Evento que embalou a minha infância e juventude e, ainda hoje, deve propiciar deliciosos encontros entre os livros regionais (da caiçaragem) e os olhos famintos de leitores de diversas naturezas. 
Enfim, "Encontros" que valem!

MIRANDA, Rafael Puertas de. Encontros. Jornal Mogi News, Mogi das Cruzes, 23 de Outubro de 2011. Caderno Variedades, p. 03.