domingo, 12 de setembro de 2010

Memórias de um Sargento de Milícias: à beira do "Causo".

 
Ilustração de Francisco Acquarone para a primeira edição do Vol. 1 da Biblioteca de Literatura Brasileira (Rio de Janeiro: Livraria Martins, 1941).
 
Talvez não exista nada mais prazeroso do que revisitar uma bela obra literária. Também uma boa edição colabora bastante. Então, preparado para submergir no pitoresco Rio de Janeiro, do início do século XIX, abracei mais uma vez o divertido, surpreendente e instigante “Memórias de um Sargento de Milícias”, de Manuel Antônio de Almeida (1831-1861), obra publicada anonimamente em folhetins no suplemento literário “A Pacotilha” do jornal carioca “Correio Mercantil”, nos anos de 1853/1854, e posteriormente lançada em dois tomos nos anos de 1854/1855. A edição escolhida, já um tanto amarelada, caíra em minhas mãos há algum tempo: o volume I da Biblioteca de Literatura Brasileira, lançado em Janeiro de 1941 pela Livraria Martins, com Ilustrações de Francisco Acquarone e a elucidativa Introdução de Mário de Andrade. Elucidativa porque o poeta Modernista, franco admirador da obra excêntrica do escritor Romântico, empreendera uma contundente pesquisa para a elaboração do texto, criando, talvez, uma das mais importantes ferramentas para a compreensão da obra posta; digno presente, diga-se de passagem, das mãos de tão fecundo entusiasta da cultura nacional. No breve ensaio, somos apresentados à biografia do autor e às características peculiares desse Romance, responsável, segundo ele, pelo relato dos casos e as adaptações vitais de um bom e legítimo “pícaro” e que é uma espécie de síntese das vivências infantis do escritor, oriundo de uma família de pobres-diabos (“O menino não teria por certo largos carinhos de educação burguesa, filho de soldado, num tempo em que o serviço da guerra dependia pouco de estudos, ainda menos de boas maneiras e procriava freqüentemente ótimos cantadores de modinhas. O mais provável é que Maneco, além do amor dos pais, tivesse a experiência do ar livre e recebesse o aprendizado da rua”), e dos "Causos" memoráveis narrados a ele pelo sargento desengajado Sr. Antônio César Ramos, que, na época da publicação do folhetim, trabalhava como diretor de escritório no Correio Mercantil. Este, português, viera como soldado para a Guerra da Cisplatina, em 1817, no regimento de Bragança, chegando depois a sargento de milícias, ainda na Colônia, sob o comando do Major Vidigal (Cf. FILHO, Alexandre José de Melo Morais. Fatos e Memórias. Rio de Janeiro: 1904). Esta figura verídica que vivenciara o “tempo do rei” conhecera e muito prezava Maneco Almeida, o qual, antes de subir para a redação, abastecia-se de "causos" e costumes a fim de empregá-los em suas narrativas. Logo, o título da obra, que, à primeira vista, evidencia os eventos da vida de Leonardinho (protagonista da trama), possa, na verdade, ser uma referência direta ao informante tão estimado, configurando como uma espécie de homenagem. Posto isto, cabe ressaltar que o livro possui características marcantes do gênero discursivo oral de que resulta, sendo a transposição literária explicita de uma memória cultural adquirida de ouvido. Um fenomênico fato literário que anda à beira do “causo”, oferecendo-nos quadros completos de um Rio de Janeiro bufo, onde o casamento e o aburguesamento representam o fim das aventuras, o fim da malandragem. Vale!
 
Em tempo: o Projeto Brasiliana-USP disponibiliza para download grátis a primeira edição no formato romance (Tomo I – 1854/ Tomo II – 1855: no mesmo arquivo, extensão pdf.). Confira no link abaixo:
Glossário:
CAUSO (cau.so) Bras. sm.
1. Conto, história, caso; o ocorrido, acontecido (causo de mistério).
2. Narração curta, ger. falada: Ele é exímio contador de causos.

PÍCARO (pí.ca.ro)
6. Liter. Teat. Personagem central da trama picaresca, cuja principal característica é viver de ardis e expedientes para tirar proveito das classes mais privilegiadas. Ardiloso personagem-tipo das novelas espanholas do século XVII.
[F.: Do esp. pícaro. Hom./Par.: pícara(s) (fem. e pl. de pícaro), picara, picaras (fl. de picar).]


MIRANDA, Rafael Puertas de. À beira do “Causo”. Jornal Mogi News, Mogi das Cruzes, 25 de Setembro de 2011. Caderno Variedades, p. 03.

terça-feira, 6 de julho de 2010

Levantado do chão

Cada um cumpre o que lhe cabe. Um grande artista sonha, a obra nasce.
Lembro-me ainda de quando, às portas da faculdade, um Mestre depositou nas minhas mãos uma edição amarelada do “Ano da Morte de Ricardo Reis”, alertando-me de pronto da “engenhosidade e força verbal” do autor que, segundo ele, era a mais expressiva voz da Literatura Portuguesa contemporânea, um autor chamado José Saramago. No mês passado, por intermédio da boca de um aluno meu, soube da morte do escritor lusófono ganhador do prêmio Nobel de Literatura. O jovem discente, decerto, esperava uma lágrima; disse-lhe, no entanto, que não há o que temer: Saramago fica.
Nos dias que se seguiram, muito se disse da vida do autor de “Caim”. Não abundam, entretanto, palavras certas sobre sua obra: pasmo, assisti a um bem penteado âncora de telejornal afirmar que “Saramago não se destacou pelos temas abordados, mas sim e somente pela linguagem empregada” (?). Será incompreensível um autor tão estimado pelo leitor brasileiro?
Saramago lapidou um universo literário onde o homem, vitimado por uma lógica dupla, deve questionar e aprender com o passado. Também lá orbitam interiores desvelados e o fantástico, alinhado, deixa ranhuras na vítrea carapaça do real. Todo o banquete de tensões que assombram o homem de hoje e de ontem nos é servido torrencialmente com uma escrita que, antes de só “teimar” a fala por irreverência ou desfastio, subvertendo normas e sonegando sinais gráficos, brinda-nos com ritmo marcadamente solto, de conversa fiada com esmero.
O narrador é sempre parte da matéria narrada (fusão). Com ele, geralmente, experimentamos e vivenciamos situações capazes de precipitar luz para os recônditos da alma. E porque tão crítica e sensata, sua narrativa arrebata o leitor brasileiro; encantamento raro. Talvez, porque nos leve a questionar a dinâmica da sociedade pós-moderna, mãe do náufrago em jangada de pedra à espera de identidade; talvez, porque saibamos intimamente que ele nos inaugura também como personagens seus; conduzindo-nos, criaturas rasas que somos (ou nos tornamos), pelos caminhos tortuosos do espetáculo absurdo que nos oprime.
Logo, Saramago fica. Ele, como ninguém, soube matar a intermitente morte.

P.S.: Em novembro do ano passado, enviei-lhe uma carta. Não espero resposta, pois já a encontro nas prateleiras de minha estante.

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Do título

"Na realidade, todo leitor é, quando lê, o leitor de si mesmo. A obra não passa de uma espécie de instrumento óptico oferecido ao leitor a fim de lhe ser possível discernir o que, sem ela, não teria visto certamente em si mesmo".
 
Valentin Louis Georges Eugène Marcel Proust (1871-1922), in "O tempo redescoberto".