domingo, 31 de março de 2013

Beatnik Caboclo, ou o Samurai Malandro, ou o Caipira Cabotino

Durante uma entrevista concedida a um canal televisivo italiano (disponível no Youtube com o título: “Qual é o sentido de escrever?”), o cineasta, roteirista e escritor italiano Pier Paolo Pasolini (1922-1975) - responsável pela bela e polêmica adaptação/releitura: “Salò ou Os 120 Dias de Sodoma” -, quando perguntado a respeito dos possíveis limites da atividade literária, declarou que os mesmos têm uma natureza linguística: “(sic) como poeta e escritor italiano sou muito limitado; preferiria ser um escritor em língua suaíli, que é a 12ª língua do mundo”. Ou seja, depois de Dante, Petrarca e alguns outros nomes de peso, não há nada que se possa fazer com a língua italiana que possua o frescor da originalidade, da inovação.
Há quem diga que com a Língua Portuguesa não acontece de outra forma. No entanto, contrariando estas próprias determinações, surpreendemo-nos ainda com o gênio e a energia de artistas contemporâneos, criadores de novas “formas de escrever”; novas formas de aproveitar esta sublime matéria-prima (a palavra em língua portuguesa) que já “apanhou” tanto e arrancar dela novos estilos, fazendo-a renascer a cada instante.
Exemplo palpável deste fenômeno é o saudoso poeta curitibano Paulo Leminski (1944-1989), que acaba de ganhar uma belíssima edição póstuma: “Toda Poesia” (Ed. Companhia das Letras, 2013). A antologia, apanhado dos principais títulos do autor dedicados à poesia, realoca o Leminski em nossas prateleiras, resgatando uma inventiva e despojada verve poética (“sejamos pelo novo, não pelo belo”), fruto de uma espécie de “deglutição do pau-brasil oswaldiano”, como diria o também saudoso poeta e professor Haroldo de Campos, e que oscilava entre o popular e o erudito (“geração mimeógrafo” – “poesia concreta”), sem se entregar às pieguices típicas dos poetas-escoteiros orfeônicos e seus sonetos entediantes. Também não escapa à obra mencionada as composições/letras que produziu para figuras emblemáticas da Música Popular Brasileira.
Enfim, um excelente panorama da poesia deste verdadeiro judoca das palavras, mas não completo. Já circulam pela internet poemas de sua autoria que não foram incluídos na coletânea. Num deles, divulgado por sua viúva, a também poetisa Alice Ruiz (que já ministrou uma fantástica palestra em Mogi das Cruzes, esmiuçando o fazer poético), o polaco-paranaense escreve:
“(...)Chega. Tudo chega. Chega o auge.
O que eu sou me chega”.
(Auge, in: Jornal Correio de Notícias)
Evoé, Leminski. Vale!

MIRANDA, Rafael Puertas de. Beatnik Caboclo, ou o Samurai Malandro, ou o Caipira CabotinoJornal Mogi News, Mogi das Cruzes, 10 de Março de 2013. Caderno Variedades, p. 02.

Dos “erros editoriais” e suas bizarras consequências

Capa da edição recolhida pela Ed. Record.
Há poucos dias, a Editora carioca Record anunciava o cancelamento da distribuição da alardeada antologia “Poesias nunca publicadas de Caio Fernando Abreu”, resultado da tese defendida pelas pesquisadoras Letícia da Costa Chaplin e Márcia Ivana de Lima, que analisaram “minuciosamente” o espólio de escritos não publicados do autor gaúcho.
O jornalista Caio Fernando Abreu (1948-1996), considerado um dos grandes nomes de sua geração, consagrara-se literariamente com seus textos em prosa (sobretudo, contos e romances) e ainda hoje faz muito sucesso entre os jovens que utilizam redes sociais (seus textos apresentam números expressivos de compartilhamento); também, não é difícil encontrar alunos agarrados a suas obras, marcadas por um estilo poético, conciso e refletoras das (in)certezas angustiantes da vida. Vale muito!
Entenda, então, querido leitor, a enorme expectativa criada com o anúncio da publicação mencionada. Como seria a faceta lírica de um escritor lambuzado de virtuosismo e originalidade? Caio, perseguido durante a ditadura pelo DOPS, antes de se exilar na Europa, escondera-se no sítio da poeta campineira Hilda Hilst. Deste período de convivência (quase dois anos), restaria alguma espécie de evidência poética?
As interrogações já se avolumavam, quando, numa bela tarde, recebemos a notícia da interdição da obra e seu "recolhimento". A Editora alegou, sem mais detalhes, que a publicação apresentava um “erro editorial”. Mas, não demorou muito para que o problema fosse revelado e causasse um verdadeiro estardalhaço nos fóruns de discussão sobre Literatura: na página 49 do referido livro, encontra-se o poema “Barato Total”, que, segundo as organizadoras, aparece em um diário de 1976. Acontece que o texto é na verdade uma música composta por Gilberto Gil e gravada por Gal Costa (há um desenho, inclusive, da cantora na referida página). A Editora, rapidamente, escalou uma nova especialista para revisar a obra e explicar o erro grotesco num prefácio.
Enfim, este caso lastimável, além de lançar sombras espessas sobre o processo de aprovação de trabalhos acadêmicos no Brasil, expõe a fragilidade do corpo revisional da editora em questão e exemplifica o não reconhecimento das ferramentas virtuais durante as etapas de uma pesquisa (cinco sítios de busca consultados apresentam/apontam, como resultado para a expressão “Barato Total”, a referida música de Gilberto Gil). Enfim, só não foi culpa do Abreu!

MIRANDA, Rafael Puertas de. Dos "erros editoriais" e suas bizarras consequênciasJornal Mogi News, Mogi das Cruzes, 17 de Fevereiro de 2013. Caderno Variedades, p. 02.

Tom sobre tom

"O inferno são os outros" (Sartre)
Para o desespero dos apreciadores da “Alta Literatura” e para o verdadeiro regozijo dos consumidores da típica narrativa de gôndola de supermercado, o grande sucesso de vendas do ano que se encerrou há poucas semanas fora a trilogia iniciada pelo romance "Cinquenta Tons de Cinza" (Ed. Intrínseca), da oportunista escritora inglesa Erika Leonard James. Lançado originalmente em 2011 e ultrapassando a marca de vendas de outros consagrados “pacotões culturais” do mesmo gênero, o livro alcançou a marca de milhões de exemplares vendidos também nas plagas tupiniquins.
A obra tem sua gênese no ambiente virtual das “FanFics” (corruptela em inglês para a expressão: ficção criada por fãs). Incomodada com o excesso de decoro da pudicíssima Stephenie Meyer e seu insosso "discurso de castidade" embutido na fraca série “Crepúsculo”, decidiu utilizar as personagens da autora americana numa narrativa carregada de erotismo. Quando a versão digital alcançou sucesso, seus direitos foram adquiridos por uma editora que sugeriu a substituição dos nomes da saga de Meyer, assim como os elementos da cultura vampiresca “clean”.
Na obra de James, narrada em primeira pessoa, somos apresentados a uma tola estudante de jornalismo, aparentemente inexperiente no mundo do sexo, que se envolve com um multimilionário obscuro, que lhe oferece seu amor e uma lista de vantagens em troca de agrados sadomasoquistas e de outras naturezas parafílicas.
Embarcando na narrativa capenga, desorganizada, entupida de clichês de filminhos da sessão da tarde (bem ao estilo Paulo Coelho) e coroada com palavras de baixo calão típicas de um aluno de ensino fundamental, somos apresentados às rasas entranhas desta personagem feminina entediante que, ao mesmo tempo em que luta com suas fantasias de submissão, manifesta um amor perseverante e transformador.
A forma como a escritora aborda as práticas parafílicas apresentadas na obra incomoda; pura demonização. Classificado como “pornô para mamães” e envolvido numa atmosfera de libertinagem, o livro, ao contrário do que se pensa, é mais conservador e careta do que muitas obras que andam soltas por aí.
Mesmo assim, como uma espécie de fábula moderna, incorporou-se ao inconsciente feminino ao resgatar a embotada atmosfera dos “romances cor-de-rosa” das prateleiras do esquecimento e também por fazer supor, erroneamente, às mesmas (as leitoras assíduas) que é possível a total "transformação", ou “reformatação” da personalidade, desejos, hábitos e vontades do sujeito par amoroso do sexo masculino, anulando-o até que, sob os chicotes e outros adereços fetichistas, não reste "tom sobre tom" de sua identidade.

MIRANDA, Rafael Puertas de. Tom sobre tomJornal Mogi News, Mogi das Cruzes, 27 de Janeiro de 2013. Caderno Variedades, p. 02.