segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Forma e Revolução

"Sem forma revolucionária não há arte revolucionária." 
(Vladimir Vladimirovitch Mayakovsky)
Era a boca da noite, quando despontou nas “redes” a nota de falecimento do poeta jundiaiense Décio Pignatari. Cerca de duas horas depois, ainda nenhum órgão de imprensa divulgara a notícia, o que acabou deixando muita gente ressabiada. Alguns acusavam as alheias mídias, outros, desconfiados, cogitavam a hipótese de que tudo não passasse de mero boato. No caso, a melhor forma de elucidar o mistério é buscar foro privilegiado. Então, ao acessar páginas de amigos próximos do poeta, constatei que não era mentira: Décio não estava mais entre nós.
Quando ainda morava em Osasco, aos vinte e dois anos, publicara seus primeiros poemas na "Revista Brasileira de Poesias" (revista fundada e dirigida por Péricles Eugênio da Silva Ramos, a partir de 1947, na cidade de São Paulo). A breve repercussão de seus textos chama a atenção de dois jovens irmãos poetas Augusto (1931) e Haroldo de Campos (1929-2003) - a publicação de uma fotografia de Décio permite que Haroldo o reconheça em uma tertúlia. Reagindo ao conservadorismo da poesia realizada pela geração de 45, o trio, a partir de 1952, passa a publicar a revista "Noigrandes" (1952-1962), que viria a se tornar o veículo da nova estética inaugurada pelos mesmos, denominada “Concretismo”.
Antecipando a linguagem do espaço virtual e a sensibilidade dos novos tempos, o manifesto concretista (“Plano-piloto para Poesia Concreta”, publicado na segunda edição de Noigrandes) anuncia o fim do verso como unidade rítmico-formal do poema, sua temporalidade e linearidade. A poesia concreta passa, então, a reconhecer o espaço do poema como agente estrutural, enleando a linguagem verbal a não-verbal; uma integração entre som, visualidade e sentido das palavras. Surge um novo campo da linguística, bem específico, resultado desta aproximação: a sintaxe “verbivocovisual” (espacial/icônica/visual).
No mesmo ano, 1956, o grupo lança o movimento oficialmente, durante a Exposição Nacional de Arte Concreta no Museu de Arte Moderna de São Paulo e, no ano seguinte, no saguão do Ministério da Educação e Cultura, no Rio de Janeiro.
A poesia concreta ganha o mundo. Ainda assim, a estética terá ávidos críticos. Em praticamente todas suas entrevistas, Pignatari respondia a estas investidas, indicando, sobretudo, os professores de cursos de letras de universidades públicas como seus maiores algozes (o saudoso crítico Mário Chamie era um dos incansáveis odiadores do Concretismo). Também afirmava que a Poesia Concreta, a despeito de tanto ataque, realizou-se plenamente como intenção artística e não pode ser ignorada; inscreveu-se em nossa “circulação sanguínea”. E tinha razão! Adeus, Poeta.

MIRANDA, Rafael Puertas de. Forma e RevoluçãoJornal Mogi News, Mogi das Cruzes, 09 de Dezembro de 2012. Caderno Variedades, p. 07.


BreveAn 
tologiade
Poemas*de
Décio Pignatari 
(1927-2012)

*disponíveis na rede

Augusto de Campos, Décio Pignatari e Haroldo de Campos, a Tríade Concretista.

















o jogral e a prostituta negra
farsa trágica

Onde eras a mulher deitada, depois
dos ofícios da penumbra, agora
és um poema:

Cansada cornucópia entre festões de rosas murchas.

É à hora carbôni-
ca e o sol em mormaço
entre sonhando e insone.

A legião dos ofendidos demanda
tuas pernas em M,
silenciosa moenda do crepúsculo.

É a hora do rio, o grosso rio que lento flui
flui pelas navalhas das persianas,
rio escuro. Espelhos e ataúdes
em mudo desterro navegam:
Miraste no esquife e morres no espelho.
Morres. Intermorres.
Inter (ataúde e espelho) morres.

Teu lustre em volutas (polvo
barroco sopesando sete
laranjas podres) e teu leito de chumbo
têm as galas do cortejo:

Tudo passa neste rio, menos o rio.

Minérios, flora e cartilagem
acodem com dois moluscos
murchos e cansados,
para que eu te componha, recompondo:

Cansada cornucópia entre festões de rosas murchas.

(Modelo em repouso. Correm-se as mortalhas das
persianas. Guilhotinas de luz lapidam o teu dorso em
rosa: tens um punho decepado e um seio bebendo
na sombra. Inicias o ciclo dos cristais e já cintilas.)

Tua al(gema negra)cova assim soletrada em câma-
ra lenta, levantas a fronte e propalas:
"Há uma estátua afogada..." (Em câmara lenta! – disse).
"Existe uma está-
tua afogada e um poeta feliz(ardo -o
em louros!). Como os lamento e
como os desconheço!
Choremos por ambos."

Choremos por todos – soluço, e entoandum
litúrgico impropério a duas vozes
compomos um simbólico epicédio AAquela
que deitada era um poema e o não é mais.

Suspenso o fôlego, inicias o grande ciclo
subterrâneo de retorno
às grandes amizades sem memória
e já apodreces:

Cansada cornucópia entre festões de rosas murchas.

(1949, em O Carrossel, 1950)

Três poemas ideológicos de amor (1986)

Você já arranhou parde?
          já sentiu o ácaro da rosa ausente
          já mastigou pano
          já viu a romã dar-se à luz em grená
          e o golfinho saltando para o teu útero
Você já ouviu um pintassilgo ouvindo Beteljosa

I amo você

***

ventrava estrelas
                 e azul teu cheiro
                                 e cheiros
                 beiravam pregas
                 de luz e pele
                                 e enchiam o
                                                        cosmos um corpo
                                                        que se beijava
                                                                                por inteiros

***

Morrer em Nínive
desmemoriado
insensível a tudo

não fôra
a grandeza do fim

não fôra a lembrança
daquela terra
de índios e suipsitacídios

onde teus olhos
me falolharam
por tuas bocas

pela primeira vez

EUPOEMA

O lugar onde eu nasci nasceu-me
num interstício de marfim,
entre a clareza do início 
e a celeuma do fim.

Eu jamais soube ler: meu olhar 
de errata a penas deslinda as feias 
fauces dos grifos e se refrata:
onde se lê leia-se.

Eu não sou quem escreve, 
mas sim o que escrevo:
Algures Alguém
são ecos do enlevo.













Link´s:

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Perto

Aproveitando os últimos suspiros do truculento ano de 2012, alguns entusiastas do estudo da literatura já direcionaram suas atenções para as datas comemorativas a serem celebradas no próximo ano. Ainda, entre as discussões acaloradas, não vi nenhuma referência a uma importante obra que, em 2013, comemorará seu 70º Aniversário. Trata-se da narrativa “Perto do Coração Selvagem“ (1943), romance de estréia da escritora ucraniana, naturalizada brasileira, Clarice Lispector (1920-1977).
Clarice, que escrevera o livro com dezenove anos e o guardara até o ano de publicação, causou um verdadeiro alvoroço entre a crítica literária brasileira que, até então, concentrava fogo em romances regionalistas bem enredados; respeitadores de um nexo sequencial narrativo linear (também a prosa intimista despontava).
A obra de Clarice, fragmentária e carregada de digressões, além de surpreender a todos, inaugurou na literatura brasileira um estilo elíptico e introspectivo que nos leva às entranhas das complexas personagens que muitas vezes, pelo teor de suas divagações e questionamentos existenciais e metafísicos, parecem-nos por demais surpreendentes, quiçá inacreditáveis.
Em “Perto do Coração Selvagem”, acompanhamos o fluxo de consciência da inquieta personagem protagonista Joana (espécie de alterego da própria escritora) que vasculha suas lembranças de menina órfã para lançar luzes sobre o mundo adulto no qual está inserida no momento da enunciação. Diante do divórcio que acabou de protagonizar, tenta reencontrar a si mesma, libertar-se. Todo um mosaico de experiências sufocantes emerge a fim de recompor seu estado bruto; o estado de construção da sua essência, onde cabe até a relativização da moral. Vale!
***
Fragmento:
“(...)- Joana... Joana, eu vi...
Joana lançou-lhe um olhar rápido. Continuou silenciosa. 
- Mas você não diz nada? - não se conteve a tia, a voz chorosa. - Meu Deus, mas o que vai ser de você?
- Não se assuste, tia.
- Mas uma menina ainda... Você sabe o que fez?
- Sei...
- Sabe... sabe a palavra...?
- Eu roubei o livro, não é isso?
- Mas, Deus me valha! Eu já nem sei o que faço, pois ela ainda confessa!
- A senhora me obrigou a confessar.
- Você acha que se pode... que se pode roubar?
- Bem... talvez não.
- Por que então...?
- Eu posso.
- Você?! - gritou a tia. 
- Sim, roubei porque quis.  Só roubarei quando quiser. Não faz mal nenhum.
- Deus me ajude, quando faz mal, Joana?
- Quando a gente rouba e tem medo. Eu não estou contente nem triste."

MIRANDA, Rafael Puertas de. PertoJornal Mogi News, Mogi das Cruzes, 02 Dezembro de 2012. Caderno Variedades, p. 07.

domingo, 18 de novembro de 2012

Dos rótulos


Em Agosto passado, a editora Cosac Naify lançava a belíssima obra bilíngue “Poemas de Konstantinos Kaváfis – Tradução: Haroldo de Campos” ("Konstantinos/Haroldo/Kaváfis/de Campos"; na capa). A primeira edição, com tiragem de mil e quinhentos exemplares, hoje já é quase uma raridade e não é por menos (aguarda-se uma segunda tiragem). 
Organizado e revisado pelo respeitável tradutor Trajano Vieira (ganhador, em 2012, do prêmio Jabuti pela excelente tradução da Odisseia, de Homero; publicada pela Editora 34), o livro contém o louvável trabalho do saudoso professor e poeta concretista Haroldo de Campos (1929-2003), que vertera do grego moderno 15 poemas do escritor greco-alexandrino Kaváfis. 
Como diria Haroldo, contrariando puristas insossos, trata-se de um trabalho de “transcriação” poética e não uma mera tradução literal. Nos textos, podemos distinguir a própria essência também do tradutor/poeta, que, numa contenda brilhante, nos oferece a alma de um dos mais entusiasmantes e contraditórios nomes da poesia em grego moderno, valorizando sua melopeia, suas construções, sua subjacente ironia e, sobretudo, as sutilezas de uma linguagem despojada e depurada. Ainda, no poema “À espera dos bárbaros”, emprega elementos versíficos de Drummond – propondo um diálogo cabível (interessante a correspondência entre a trajetória dos dois poetas: nascidos em famílias abastadas, terminam a vida desempenhando funções burocráticas no funcionalismo público e escrevendo poemas para suplantarem a "asfixia" de suas funções). 
No prefácio da referida obra, encontramos um poema “kavafiano” de Haroldo de Campos e no apêndice, que forma uma segunda seção, a “transcriação” do poema “A catástrofe de Psara” e de um excerto de “Canto heroico e funeral para o segundo-tenente desaparecido na Albânia”, respectivamente, dos poetas gregos Dionysios Solomos (1798-1857) e Odysséas Elýtis (1911-1996); um breve ensaio de Haroldo (publicado anteriormente na revista “Remate de Males” – UNICAMP), que elucida o processo de  transcriação de um dos poemas de Kaváfis; e, finalmente, a nota final de Trajano Vieira, que nos apresenta a importância do projeto editorial e o trabalho de Campos (os dois traduziram brilhantemente a Ilíada, de Homero). 
Konstantinos Kaváfis (1863-1933) nasceu na Alexandria, numa colônia grega, e sua obra é constituída de 154 poemas reelaborados/recriados durante toda sua vida. Não publicou livros, optando pela distribuição de seus textos em folhas soltas e breves opúsculos. Homossexual assumido, contrariava, em seus poemas, valores tradicionais e, mergulhando na história, reconstruía a visão do oriente helênico, denotando o embate entre a cultura pagã e cristã. A obra resenhada apresenta seus mais famosos poemas. Vale! 
*** 
Em um artigo ralo intitulado “Tradução do alexandrino Konstantinos Kaváfis recoloca autor em cena*”, publicado no dia 31/08/2012 no jornal “O Estado de São Paulo”, o crítico Antonio Gonçalves Filho, ao apresentar a mesma obra, comete, entre outros, dois enganos imperdoáveis: o primeiro ao afirmar que a obra contém 17 poemas de Kaváfis (será que não a leu?) e o segundo (e mais grave) ao acrescentar ao lado do nome do poeta Carlos Drummond de Andrade o rótulo “(homofóbico)”, sugerindo que Haroldo tenha se equivocado profundamente ao empregar suas estruturas. Caro Antonio, por acaso desconhece os poemas homoeróticos de Drummond? Acredito que sim. Inclusive, desconfio de que leia pouco, mas que, mesmo assim, não se canse de distribuir rótulos espúrios a quem não os mereça. Cresça.

MIRANDA, Rafael Puertas de. Dos rótulosJornal Mogi News, Mogi das Cruzes, 25 Novembro de 2012. Caderno Variedades, p. 07.

(*) Link do Artigo mencionado:

Manutenção


Era no tempo da trilha,
quando ainda o manchego heroico
singrava tortuosa fortuna
e a sandice, gasta armadura,
galopava rocinante.
(tanto livro lido!
tanto livro lido!)

Numa curva do incerto caminho,
entretanto,
pai de suposto destino domado,
encontra, a triste figura,
uma quinta;
(es)quina de tempo menino.

Por pouco,
imagem remota o acorda de sonho profundo e,
presto, acha a lança partida
puro brinquedo nulo,
fraco frasco fulo do elixir da vergonha.
(razão voltou, e também quer...)

Então, de um muro dobrado às pressas,
cambaleando a pança que lhe roubara o nome,
surge o maltrapilho escudeiro.
Na ânsia protetora que lhe comove,
desfere derradeiro berro,
insígnia folheada de cavalaria,
veneno som, tara crina,
rasgando a hipnose.

O cavaleiro se volta,
e volta também o absurdo;
apneia cega em oceano turvo.

Então,
ironia ou não,
vai que a loucura,
fruto obtuso de sintonia tão estreita,
fora bem de novo parida pela mão do são,
manutenção.

MIRANDA, Rafael Puertas de. Da loucura (Manutenção)Jornal Mogi News, Mogi das Cruzes, 11 de Novembro de 2012. Caderno Variedades, p. 07.

Mestre do mistério


Edmundo Donato (1925-1999), irmão do polêmico escritor Mário Donato (autor do livro “A presença de Anita” - 1948), imortalizou-se com o pseudônimo “Marcos Rey”. Não há leitor juvenil da minha geração que não tenha se divertido com as narrativas de mistério/suspense “O mistério do cinco estrelas” (1981), “Um cadáver ouve rádio” (1983), e outras publicadas pela famigerada “Série Vaga-Lume” (Ed. Ática). 
Depois da sua morte, dando provas de que, em vida, era um verdadeiro mestre do mistério, veio a público seu maior segredo, revelado apenas a um grupo de pessoas mais próximas e ocultado de seus leitores durante toda sua trajetória artística: na infância, em meados da década de 30, manifestou os sintomas da Hanseníase (popularmente conhecida como Lepra) e, adulto, ainda possuía sequelas do mal. 
O pseudônimo, inclusive, fora uma forma eficaz de despistar, no passado, os assustadores agentes do antigo D.L.P. (Departamento de Profilaxia da Lepra), órgão “policialesco” instituído pela secretaria da Saúde do Estado de São Paulo, que fora responsável por duas internações compulsórias do pequeno Donato. 
Como acontecia comumente nestes casos, fora denunciado anonimamente e, em seguida, perseguido, detido e levado, primeiramente ao Asilo-Colônia (“campo de concentração”) Santo Ângelo, em Mogi das Cruzes; hoje desativado. 
Lá, enfrentou a solidão e as angústias do confinamento, encontrando alívio nas leituras diversas dos livros enviados da capital pelo irmão. Como dominava a língua inglesa, durante a “prisão”, traduziu alguns livros. 
Neste período (1942), publica o seu primeiro Conto: “Ninguém entende Wiu Li”, onde se nota a influência do escritor francês Guy de Maupassant (1850-1893). A breve narrativa é publicada no Suplemento Literário de Domingo da Folha da Manhã, ilustrada por Belmonte, famoso chargista/cartunista da época, e já contém o pseudônimo que lhe traria o reconhecimento. 
Marcos passou sua adolescência em leprosários, até que, em 1945, consegue escapar do sanatório Padre Bento, em Guarulhos (dizem que até 1967, quando foi extinto o DPL, vigorou ordem de captura contra ele). Mais tarde, escreveria romances urbanos – de excelente qualidade e para adultos – e as narrativas policiais infanto-juvenis que o transformariam num sucesso de vendas e presença obrigatória em grande parte das bibliotecas do nosso país. Agora, está solto e assim é melhor. Vale!

MIRANDA, Rafael Puertas de. Mestre do mistérioJornal Mogi News, Mogi das Cruzes, 04 de Novembro de 2012. Caderno Variedades, p. 07.

Jabuti casca grossa


No ano de 1959, a Câmara Brasileira do Livro, fundada em 1946, lançava o prêmio literário “Jabuti”, que neste ano chegou a sua 54ª edição. O concurso, com o passar do tempo, devido às transformações de nosso mercado editorial e ao surgimento de novas safras de escritores, acabou se desdobrando em diversas modalidades do fazer literário e da arte do livro e consagrou-se como uma das mais representativas honrarias da plaga tupiniquim. 
De uns tempos para cá, no entanto, a disputa tem causado alvoroço no mundo literário. Em 2010, a Ed. Record anunciou que, em virtude da incoerente nomeação do romance “Leite Derramado” (Ed. Companhia das Letras-SP), de Chico Buarque como o “Livro do Ano”, não mais participaria do evento. 
Acontece que, na mesma edição, Chico havia sido derrotado na categoria “romance” pela bem construída e instigante obra “Se eu fechar os olhos agora”, de Edney Silvestre, publicada pelo grupo editorial carioca (este fenômeno já ocorrera em edições anteriores). 
A injustiça ganhou forte repercussão na Internet e desembocou no movimento/petição: “Chico, devolve o Jabuti!”. Jacaré devolveu o Jabuti? Não? Nem eu. Prevaleceu o “clichê derramado”. 
Os organizadores, a fim de acalmarem os ânimos dos não dissidentes, resolveram então alterar as regras do certame, prometendo mais justeza nas edições futuras. Agora, dois anos depois do rebuliço Chico versus Silvestre, outro entrevero desponta no horizonte, reflexo direto das alterações do famigerado regulamento. 
Na categoria romance, dez obras foram escolhidas para a fase final. Entre elas, a quelônica “Infâmia” (Ed. Alfaguara/Objetiva), da colar-de-bola nível máster Ana Maria Machado, hoje “presidenta” da Academia Brasileira de Letras. 
Embora tenha recebido bons conceitos na primeira etapa, “Infâmia” levou, de um criterioso jurado identificado como “C”, a incrível nota 0,17 (de 0 a 10) na etapa final (há boatos de que “C” seja o atento e demolidor crítico Rodrigo Gurgel). O conceito petrificou a obra na sexta colocação, mas os egos e a editora queriam mais. O episódio tem servido de pretexto para outras editoras justificarem seus choramingos. Quem levou o prêmio, afinal, foi o estreante escritor maringaense Oscar Nakasato que, com a obra “Nihonjin” (Ed. Benvirá), retrata as decepções e transformações vivenciadas pelo imigrante japonês Hideo Inabata (a história é narrada pelo neto de Hideo). Vale mesmo!

MIRANDA, Rafael Puertas de. Jabuti casca grossaJornal Mogi News, Mogi das Cruzes, 28 de Novembro de 2012. Caderno Variedades, p. 07.

terça-feira, 30 de outubro de 2012

As crianças de James II


Um ano antes de publicar a novela "A Outra Volta do Parafuso" (1897), Henry James publicara o romance "What Maisie Knew" ("O que Mais e Sabia", que no Brasil encontramos com o título "Pelos Olhos de Maise"), considerado por muitos críticos como um dos mais bem acabados textos do autor. 
As interessantes elaborações cênicas da trama e o bem planejado enredo denotam a incursão do autor na carreira de dramaturgo (James se referia à técnica empregada como o "método cênico", na narrativa). Sem abrir mão da elegância construtiva, procura depurar a expressão a fim de oferecer ao leitor, com o máximo de objetividade, uma singular e inquietante obra. 
Como apresentado anteriormente, em "A Outra Volta do Parafuso" (1898), James submete duas personagens infantis às mais terríveis experiências, despertando no leitor atento, além do sobressalto, uma comoção particular; afinal de contas, são apenas duas criancinhas. 
Já em "Pelos Olhos de Maise", uma pequena menina de seis anos não é poupada das difíceis circunstâncias da vida. A história, ambientada em Londres, começa com a truculenta separação de seus pais vulgares e superficiais, Beale e Ida Farange, que acaba se transformando numa desgastante batalha judicial pela filha. 
Ganha a guarda o pai, mas como este deve dinheiro à ex-esposa, resolve dividir a tutela do "fardo" (é comum a crítica especializada comparar a menina a uma "peteca", jogada de um lado para o outro). 
A jovem, a cada seis meses, convive com as baixarias típicas de cada uma das partes. Acredite, querido leitor, não faço uma leitura moral da situação: os pais é que são criaturas abomináveis. A mãe contrata uma babá jovem e bonita que rapidamente ganha a afetividade de Maise.
Esta babá boazinha, no entanto, muda de lado ao se transformar na nova esposa de seu pai. Neste momento, a mãe descobre um novo amor: um jovem espirituoso que nutre um grande carinho pela pequena. Por fim, a babá madrasta e o jovem padastro se unem numa tórrida paixão, chutam os seus antigos parceiros e decidem fugir e criar a pequena. 
A menina, contudo, abre mão do novo lar para ficar com a babá feia (que ainda não havia entrado neste resumo). Os pais continuam separados e irreparáveis.
A história, que recentemente ganhou uma releitura moderna para o cinema (dirigido por Scott McGehee e David Siegel; exibido em Setembro, no Festival de Toronto), esmiúça os sentimentos e reações interiores de uma criança à mercê dos desatinos daqueles que supostamente a criam. A menina sabe demais. Enfim, já não é mais uma menininha. Vale!

MIRANDA, Rafael Puertas de. As crianças de James IIJornal Mogi News, Mogi das Cruzes, 21 de Outubro de 2012. Caderno Variedades, p. 07.

As crianças de James I


Em 1898, o escritor realista norte-americano Henry James, naturalizado britânico em 1915, publicava a novela "The Turn of the Screw", que, segundo uma solução adotada por uma tradução espanhola, ficou popularmente conhecida, em língua portuguesa, como "A outra volta do parafuso". 
A obra até hoje divide a crítica especializada que a interpreta ora como uma enigmática história de terror fantasmagórico (qual seria a real natureza do mal apresentado?), ora como uma espécie de trama profundamente psicológica, capaz de confundir e tragar o leitor. 
Em verdade, a trama ganha muito com o que não é dito, com o que não é explicado. O ponto de partida da narrativa é uma espécie de reunião numa velha casa londrina (espécie de hospedagem), onde alguns figurões decidem contar histórias macabras, para matarem o tédio das noites frias. 
Um deles, apresentado Douglas, propõe o relato da história mais aterradora de que se tem notícia e que lhe fora relatada diretamente por um dos envolvidos no caso. 
Douglas pede que os ouvintes tenham paciência, pois em breve chegará a suas mãos uma espécie de diário que descreve todo o evento. 
Neste ponto, também os leitores aguardam a chegada do manuscrito que não tarda e alguns dias após seu anúncio, passa a ser lido por Douglas. Trata-se das anotações de uma anônima senhorita, de origem humilde e extremamente religiosa, que é contratada por um excêntrico, belo e endinheirado jovem para que cuide de seus sobrinhos órfãos que vivem numa de suas grandes propriedades no interior.
Ao contratá-la como governanta, o sujeito estipula uma única condição inviolável: não deve, em hipótese alguma, contatá-lo para informá-lo a respeito da vida das crianças. Deve agir como se ele não existisse. 
Encantada com o cavalheiro, a pobre donzela decide aceitar o emprego e acatar a condição estipulada. Na mansão, conhece as duas crianças Flora e Miles e, conforme convive com ambas, percebe que os pobres estão sendo amaldiçoados/perseguidos por fantasmas de antigos funcionários da família. 
Que o leitor não espere um final "cor-de-rosa", destes abundantes em narrativas de vampiros que brilham sob o Sol. Curioso é que, contrariando a ojeriza típica do bom escritor em relação à construção de personagens infantis, Henry James utiliza-se exatamente deste procedimento para aumentar nosso terror: todos se compadecem da vulnerabilidade infantil. Vale! 

MIRANDA, Rafael Puertas de. As crianças de James IJornal Mogi News, Mogi das Cruzes, 14 de Outubro de 2012. Caderno Variedades, p. 07.

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Do livro impublicável

BOLAÑO, Roberto. A Literatura Nazi nas Américas. Tradução de Cristina Rodriguez e Artur Guerra. Editora Quetzal: Portugal, 2010.
Em 1996, o talentoso escritor chileno Roberto Bolaño (1953-2003) lançava a novela intitulada "Estrela Distante". A obra, recentemente publicada pela Coleção Folha de Literatura Ibero-Americana (volume 14), tem como personagem principal o "distante" poeta Alberto Ruiz-Tagle que se infiltra em oficinas de poesia para ter contato com a juventude artística da Universidade de Concepción, no Chile. Desta maneira, acaba conhecendo o poeta e narrador da história e os seus amigos literatos. Depois do golpe de Augusto Pinochet, após assassinar uma leva de poetas considerados subversivos (membros/alunos das oficinas espionadas), o sinistro infiltrado reaparece com outro nome Carlos Wieder (do alemão: "outra vez" - o eterno retorno). Movido por ideais éticos e estéticos, o frio Wieder,  agora hábil piloto da Força Aérea Chilena, começa a desenvolver a sua obcecada obra: com trilhas de fumaça, durante apresentações aéreas, passa a escrever obscuros versos no céu do Chile.
Transforma-se, assim, numa espécie de artista oficial do temerário governo chileno. Mas a sua obra doentia - respeitada, mas não inteiramente compreendida - não se limita a estas rápidas e entrecortadas apresentações: Wieder acredita que o resultado de seus assassinatos e torturas constitua singular exemplo de uma nova Arte que desponta no horizonte das estéticas. O horror.
A trama, carregada de uma ironia amargurada, desemboca numa caçada atordoante.
O atemorizante Wieder, porém, não é inaugurado nesta narrativa. Com outro nome (Ramírez Hoffman), no mesmo ano de 1996, Bolaño já o apresentara em outra obra, espécie de dicionário ficcional de escritores (exercício borgiano, diga-se de passagem).
Trata-se do livro "A literatura nazi na América", ainda não publicado no Brasil por covardia ou censura não declarada, o que seria pior (a Editora Cia das Letras é a detentora dos direitos autorais de Bolaño no Brasil).
Isto acontece porque a apresentação de um dos escritores imaginados (Amado Couto), na verdade, é uma espécie de paródia exagerada da biografia do escritor brasileiro Rubem Fonseca, que também é mencionado no próprio capítulo. Bolaño exilou-se no Brasil durante o regime e, aparentemente, topou com Fonseca enquanto esse ainda era funcionário do IPEA (desempenhando sei lá qual função anticomunista para alegrar embaixador americano, no preâmbulo do Golpe de 64). Também, os irmãos Campos (Concretistas) são chamados de "professores anêmicos" e o escritor Osman Lins é indicado como o "dos textos incompreensíveis". 
Pouco tempo depois do início da publicação da obra de Bolaño pela Editora Cia das Letras, Fonseca, que era autor da mesma editora, abandonou-a sem muitas explicações.
Mesmo assim, "A literatura nazi na América" nos convida a refletir sobre a persistência e o recrudescimento do nazismo e talvez esta seja a sua maior importância num tempo onde, parafraseando um grande amigo e mestre, "há certo fascismo no ar" e também, porque não, à beira das urnas, espreitando as teclas insossas do voto.
***
(Adendo:
Em 2019, enfim, a Cia das Letras publicou a referida obra de Bolaño e o fascismo no ar, indicado no fim do texto, materializou-se.)

MIRANDA, Rafael Puertas de. Do livro impublicável. Jornal Mogi News, Mogi das Cruzes, 07 de Outubro e 18 de Novembro de 2012. Caderno Variedades, p. 07.

terça-feira, 9 de outubro de 2012

Da poesia que não era séria

Há pouco tempo, numa destas tardes ensolaradas e secas do início do mês de setembro, encontrava-me mais uma vez com um dos meus mestres literatos que, embora não exibisse uma gravata sisuda e tampouco irradiasse a soberba típica de intelectuais desta envergadura, embalava-me com a sua impressionante sabedoria e profunda sensatez.
Vez ou outra, a figura consertava a posição do par de óculos no rosto com as pontas dos dedos escanifrados onde já não se podiam distinguir nitidamente os traços das digitais, talvez perdidas nos miolos dos livros que tanto folheava desde sempre.
A certa altura da conversa, ao refletir sobre os destinos dos antigos alunos (como se estes fossem livros repousando em estantes organizadas pelo ocaso), veio-me com esta:
"Mogi das Cruzes, então? Terra tranquila. Sabe, lembro-me de ter lido alguma coisa de um poeta satírico daquelas bandas. Coisa fina; humor apurado - do século XIX. Muito celebrado. Manuel de Almeida Melo Freire, pai de Dona Yayá. Conhece?"
Disse-lhe que conhecia vagamente a triste história da família, mas que desconhecia o talento manifestado pelo poeta Manuel.
"Resgate-o!", finalizou com aquele tom desafiador que já fez de tantos alguma coisa.
Num primeiro momento, chequei a biografia do poeta/político e lá encontrei referências a sua única publicação, o livro de poemas satíricos e humorísticos intitulado "Henriqueida", de 1888.
A obra, espécie de antologia pessoal, recebeu críticas favoráveis e permitiu que o escritor fosse mencionado em dois dicionários literários diferentes:
- o Dicionário de Autores Paulistas, de Luís Correia de Melo (p. 242); e no
- Dicionário Literário Brasileiro, do ilustríssimo crítico literário Raimundo de Menezes (p. 287-288).
Neste último, é o único poeta nascido em Mogi das Cruzes.
A pesquisa me levou a outro achado curioso. No ano de 1741, a oficina gráfica "Lisboa Occidental" lançara obra homônima ("Henriqueida - poema heroico com advertências preliminares das regras da Poesia Épica, Argumentos e Notas"), do Conde da Ericeira (D. Francisco Xavier de Menezes). O título compartilhado talvez não seja mera coincidência.
A "Henriqueida" mogiana ainda tem escapado pelos meus dedos (não sossego enquanto não a repatriar). Fato curioso é que, contrariando a visão tacanha de que ser poeta é coisa séria, o poeta mogiano mais celebrado entre entendedores de grande poesia seja um humorista. Vale!

MIRANDA, Rafael Puertas de. Da poesia que não era séria. Jornal Mogi News, Mogi das Cruzes, 30 de Setembro de 2012. Caderno Variedades, p. 07.