quarta-feira, 29 de agosto de 2012

O livro misterioso

Fólio: 67r, Manuscrito Voynich - The Voynich Gallery, Yale.
Não há, querido leitor, na história da cultura manuscrita, uma obra mais misteriosa e intrigante do que aquela que é conhecida popularmente como "Manuscrito Voynich". Lembro-me até hoje do meu primeiro contato com o texto. Entusiasmado que sou por escritos de diversas naturezas, fiquei enormemente assombrado com a beleza esfíngica deste manuscrito, conhecido também como "o livro que ninguém consegue ler".
Elaborado com um sofisticado e incompreensível sistema de escrita, estampa de uma linguagem aparentemente ininteligível (problema digno de um Perelman), é também "recheado" com rústicas ilustrações em cores, representando diversas áreas da atividade humana (botânica/astronomia-astrologia/biologia/farmacologia). 
Algumas destas imagens reforçam a atmosfera de mistério, sobretudo as reincidentes representações femininas imersas em vasos interligados, simulando uma espécie de banho ritualístico. Muitos escritores já utilizaram o texto como mote de tramas miraculosas, facilmente encontradas em prateleiras.
Pouco se sabe a respeito da obra. Estima-se que tenha perto de 600 anos e hipóteses não faltam para tentar explicar a origem e a autoria do assombro. Seu nome é uma referência ao livreiro polaco-estadunidense que o adquiriu no início do século XX, Wilfrid M. Voynich.
Hoje, o manuscrito é disponibilizado pelo portal da Beinecke Rare Book and Manuscript Library da Universidade de Yale, onde repousa fisicamente desde 2005 (o leitor amigo pode solicitá-la via e-mail, que enviarei o arquivo em pdf). Há, inclusive, um núcleo interdisciplinar na Unicamp responsável por sérias investigações a respeito da natureza do conteúdo da obra (estará ativo?). 
Ainda, a tese mais difundida é a de que o livro seja uma espécie de embuste (livro-enigma) criado pelo mago inglês Edward Kelley e seu comparsa, o filósofo John Dee, a fim de arrancar um bocado de dinheiro do esotérico e deslumbrado Rodolfo II da Germânia, fazendo-o crer que a obra fora escrita pelo frade alquimista Roger Bacon. Há, no entanto, elaborado trabalho desenvolvido pela Doutora Edith Sherwood, que decodifica os termos de botânica da obra e atribui o texto ao cerebral Leonardo da Vinci. Sendo embuste, ou enigma, a obra fica. Não dizendo nada e incompreensível é muito mais importante do que muitos livros que andam soltos por aí e que, dizendo tudo muito claramente, não nos dizem nada. Vale! 

MIRANDA, Rafael Puertas de. O livro misteriosoJornal Mogi News, Mogi das Cruzes, 26 de Agosto de 2012. Caderno Variedades, p. 07.

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segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Do cordial cinismo


A contribuição da civilização brasileira para as demais, segundo Sérgio Buarque de Holanda, no capítulo quinto de "Raízes do Brasil" (1936), é o "homem cordial", arquétipo determinado pela "lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade"; um aglomerado de virtudes que moldam o caráter brasileiro, definindo as relações humanas e que interfere diretamente na abdicação e negação da individualidade: em todas as circunstâncias existenciais da vida, o brasileiro apoia-se no outro, resultado da proeza aparentemente impossível de viver consigo mesmo.
Quanto ao culto religioso, destaca a apropriação dos ritos sagrados. Tudo deve fazer parte do ambiente íntimo do indivíduo. Exemplo crasso é a forma de relacionamento com a mítica cristã, oriunda do período posterior à decadência da religião palaciana, superindividual, em que a vontade comum se manifesta na edificação de grandiosos monumentos góticos; transfigurada em um sentimento religioso mais humano e singelo, capaz de proporcionar uma maior intimidade com as sagradas personagens desta religião, que já não são concebidos como entes privilegiados e eximidos de sentimentos humanos, afrouxando, desta forma, o rigor na prática dos ritos.
Observa, por fim, a impossibilidade do surgimento de elaborações políticas por intermédio de uma estrutura mental doutrinada por uma moral resultante de um culto que apela para os sentimentos e os sentidos (resquícios do ambiente da Contra-Reforma).
Daí o destaque do ideário positivista, ou agnóstico, responsável pela nossa República, e das ações dos Maçons, responsáveis pela nossa Independência. Em ambos os casos, o triunfo da vontade e da razão.
"A atmosfera mental nacional, então, não se faz suficiente madura para dar cabo de ações como essas, geradoras de rupturas, trazendo, ainda em suas entranhas as crendices religiosas que lhe emperram. Hoje, se por um lado sobra mais racionalidade, por outro o cinismo, erva- daninha que se apropria do sujeito, impele-o aos ditames da mediocridade e estagnação. Daí que o espectro do homem cordial se transmuta no símbolo do atraso, contraste que se coaduna a nossa formação."
Enfim, entre a iniciativa do nosso querido Bandeirante degolador de índio (dos nossos Integralistas domésticos) e o escárnio do empacado "homem cordial", fico com o segundo, sob pena de decepcionar o leitor com uma "cachorra" apologia ao doce cinismo, tão comum, inclusive, nestes tempos de voto. Macunaímico.

MIRANDA, Rafael Puertas de. Do cordial cinismo. Jornal Mogi News, Mogi das Cruzes, 19 de Agosto de 2012. Caderno Variedades, p. 07.

Volubilidades

Roberto Schwarz, crítico literário nascido em Viena e radicado no Brasil, no admirável ensaio "Um Mestre na Periferia do Capitalismo: Machado de Assis" (1990), ao analisar detalhadamente o romance machadiano "Memórias Póstumas de Brás Cubas"(1881), sugere uma chave de interpretação peculiar para o texto, sintetizada no conceito de "Volubilidade".
Segundo o autor, o princípio formal da narrativa reproduz (como num espelho) implicações estruturais do quadro histórico brasileiro, no qual a classe dominante submete a Norma (a "Letra") aos seus caprichos, às suas veleidades: a pitoresca "ânsia de transgressão". Bravo!
De fato, o defunto narrador Brás Cubas comporta-se como uma espécie de "biruta", guiado pelo vento de seus interesses pessoais, pela brisa da satisfação plena de suas vontades imediatas; e, em decorrência disto, transmuta-se em cada um dos parágrafos avançados, desdizendo-se (já ele também não se preocupa em confessar sua volubilidade).
Assim, temas, estilo ou opiniões não resistem a este escancarado processo de expiação da intimidade, que evidencia a decorrente pluralidade fisionômica, abençoada pelo senso de impunidade moral.
Naturalmente, é de se esperar que um sujeito como este ingresse na carreira política, precipitando-se acomodadamente nesse universo movediço de mudanças inexplicáveis e surpreendentes de fisionomia (lembre-se, querido leitor, dos últimos apertos de mão, das alianças bizarras, da não adequação do "tipo" à "legenda", das promessas renegadas, dos obscuros que teimam transparência, das "camisas" com as mesmas listras, das alfabetizações imediatas, e, sobretudo, das siglas partidárias que, representando muito, não dizem nada -evidências condizentes ao conceito de modernidade líquida, no qual o poder se distanciou da política).
Ainda, depois de conseguir uma vaga na Câmara dos Deputados, numa das sessões, Brás apresenta seu único e esdrúxulo projeto: "A diminuição da barretina (chapéu) da Guarda Nacional, que merecia um uniforme ´leve e maneiro´", tão inútil como outros que andam soltos por aí (como a paranoica instalação de detectores de metal em portas de teatros).
Por fim, atento as implicações semânticas do termo "volúvel", não nos esqueçamos da última definição do Aurélio, aqui amplificada para dar mais efeito: Morf. Veg.: Diz-se da planta daninha cujo caule se enrola num suporte e dele não larga. "Mamãe eu quero mamá"!

MIRANDA, Rafael Puertas de. Volubilidades. Jornal Mogi News, Mogi das Cruzes, 12 de Agosto de 2012. Caderno Variedades, p. 07.


segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Da peçonha II

Ao chamado de uma carcomida e horrível velha, que é a rainha da festa -espécie de anfitriã, no fundo da brenha escura, saltitam seres asquerosos, seguindo o batuque infernal, dançando ao redor da fogueira.
Estão lá: figuras góticas (diabos, capetas, cadáveres e esqueletos), seres folclóricos ("lobisome", mula-sem-cabeça e duendes) e animais consagrados pela cultura popular como asquerosos, malignos, agourentos, violentos e/ou peçonhentos (crocodilo, cobras, lagartixas, sapos, galo-preto, mamangava, taturana e getirana- estas três últimas referidas como "bruxas"); que, durante os ritos, proferem discursos entusiasmados enquanto fazem "bagunça". A comemoração sinistra, no entanto, é atrapalhada pela presença da Morte que, montada numa "égua-amarela", enxota a súcia maldita para debaixo das relvas, para o inferno, para a cova; restando apenas o forte cheiro de enxofre. Aos poucos, o rastro daquela asquerosa folia desaparece:
"(...)E, na sombra daquele arvoredo,
Que inda há pouco viu tantos horrores,
Passeando sozinha e sem medo.
Linda virgem cismava de amores".
Ainda no fim de suas "Poesias Diversas", onde repousa o poema apresentado, Bernardo Guimarães acrescenta um curioso conjunto de notas a respeito de seu texto. Uma das mais curiosas descreve um dos seres mencionados, a Getirana (ou jequitirana/jequitiranaboia): "(...) Getirana, ou Getiranaboia. Insecto raríssimo, que se encontra nos sertões do Brasil. Sua fórma é singularíssima, e só um desenho poderia dar d´ella uma idéia precisa. É uma grande mosca de uma até duas pollegadas de comprimento. Tem azas como as da cigarra, porém excedendo muito ao tamanho do corpo, que é oblongo como o da borboleta. Tem um ferrão e dizem que quando desprende vôo, parte direto com o terrível aguilhão estendido como uma banhoneta, e desgraçado do ente vivo em que toca!... cai imediatamente fulminado".
Bernardo dá mostra de incredulidade diante da interpretação ou crendice popular que enxerga, neste estranho inseto, a marca sinistra da maldade expressa pelo seu suposto "ferrão" peçonhento e mortal.Em verdade, não existe nenhum caso de morte por picada de jequitirana e os estudiosos a retratam como uma inofensiva parente das cigarras. Muitos se debruçaram, inclusive, para a origem da "lenda", que não é exclusivamente brasileira. Então, mesmo sem peçonha, a pobre getirana sofre com a própria "fama".

MIRANDA, Rafael Puertas de. Da Peçonha II. Jornal Mogi News, Mogi das Cruzes, 05 de Agosto de 2012. Caderno Variedades, p. 07.

Da peçonha I

Às vezes, querido leitor, na história da Literatura, algumas "faces artísticas" de determinados escritores são sonegadas, dispensadas. Na maioria dos casos, a baixa qualidade das produções justifica o esquecimento (como é o caso dos poemas mal acabados escritos pelo grande prosador brasileiro Machado de Assis, que só não são piores do que a horrorosa tradução do poema "O Corvo", de Edgar Allan Poe, executada pelo mesmo autor); em outros, no entanto, não se sabe ao certo, ou se identificam claramente, quais forças ocultas são responsáveis por tais "apagões". Um mistério.
Assim acontece com o escritor mineiro Bernardo Joaquim da Silva Guimarães (1825-1884), celebrizado por seus romances, sobretudo o bem arranjado "A escrava Isaura" (1875), que fora, já na época de seu lançamento, muito comemorado e, tempos depois, por intermédio de uma adaptação televisiva, consagrou-se também como fenômeno de audiência (inclusive, mundial). Desta forma, eternizou-se o romancista Bernardo Guimarães, deixando no plano do quase esquecimento a sua outra "face literária": a lírica/satírica. Grande parte de seus poemas pode ser ajustado aos padrões do que convencionalmente se intitula de "ultrarromantismo". Era amigo íntimo do poeta Álvares de Azevedo (com ele fundara a mitificada e obscura "Sociedade Epicureia"). Sem pestanejar, por puro didatismo, muitos o acomodariam na Segunda Geração da Poesia Romântica Brasileira, mesmo que algumas de suas mais célebres produções poéticas escapem deste "rótulo". Um exemplo notório de sua brilhante teimosia estilística é o singular poema fescenino/obsceno "O Elixir do Pajé", espécie de paródia (do ritmo, sobretudo) do "I-Juca Pirama", de Gonçalves Dias.
O texto, impresso clandestinamente em pequenos folhetos anônimos (num primeiro momento) que circulavam de mão em mão, alcançou grande fama, mas não figura em grande parte das "Obras Completas" que encontramos em prateleiras empoeiradas (o leitor adulto que quiser se divertir com a obra, basta solicitá-la via e-mail, que a enviarei gentilmente).
Menos explícito, mas nem por isso menos curioso, é também o poema "A orgia dos duendes", talvez o texto mais brasileiro do poeta. Impregnado de mitos folclóricos brasileiros e outras figuras míticas alienígenas que ainda resistiam ao tempo, o texto apresenta uma espécie de reunião seres maquiavélicos no meio da selva escura.(continua)

MIRANDA, Rafael Puertas de. Da Peçonha I. Jornal Mogi News, Mogi das Cruzes, 29 de Julho de 2012. Caderno Variedades, p. 07.

Link para o texto integral do "Elixir do Pajé":
http://www.nead.unama.br/site/bibdigital/pdf/oliteraria/250.pdf