segunda-feira, 25 de junho de 2012

Celebração

Querido leitor, neste dia cansado de Maio, celebro o aniversário de um ano desta humilde coluna dominical, espaço que me fora gentilmente cedido pela equipe deste respeitável periódico mogiano, o Jornal Mogi News.
Agradeço profundamente ao editor Márcio Siqueira e à competente professora doutora Ivone Marques Dias, entusiastas sinceros que foram dos escritos deste ordinário admirador da Literatura.
Agradeço aos companheiros de página, nobres colegas descobertos entre cascatas de letras (diria “cachoeira”, mas esta palavra não me diz nada).
Agradeço à prestativa e dinâmica equipe deste caderno, Variedades, responsável pela recepção e editoração de meus textos (acreditem, não é uma tarefa fácil me encontrar!).
E também saúdo você, querido leitor “imaginário”, que, às vezes, rompendo o silêncio da leitura atenta e reflexiva, renegando a condição de “hipótese” e “sonho”, envia-me um e-mail, um comentário, e, assim, num simples ato, justifica toda a razão de ser deste singelo emaranhado de parágrafos; a vida.
Vale (último enunciado da segunda parte da obra D. Quixote de La Mancha, de Miguel de Cervantes Saavedra, de 1615, e utilizado como fecho de meus textos – aí está a explicação prometida, Inês!).
***
***
A Máquina

Acontece que,
alheia ao insulto suspeito,
certo dia, a verdade
rasgou o oculto
em busca de gente.

Mas, entre o azul enxofre do céu
e o espasmo plástico da terra,
faltou o esperado curioso
que se metesse com ela.

Nua, então, caminhou solta,
espraiando as poeiras da estrada,
eriçando pelos vadios,
arranhando espelhos quebrados,
raspando os sentidos de leve,
enquanto
singrava os inusitados espaços da aurora.

E, como não lhe davam boca,
mergulhou matreira
nos olhos de um urutau perdido,
que amanhecera no poste da praça do centro.

Ave rebento,
divino ao avesso,
emblema sem fim nem começo,
ilha dos olhares de nojo de cega multidão.

Era a máquina,
golem indecifrável;
E, assim, lentamente,
nasceu o passado.

Poema vencedor do Concurso Literário promovido pela revista portuguesa FENDAMEL.
MIRANDA, Rafael Puertas de. Celebração. Jornal Mogi News, Mogi das Cruzes, 27 de Maio de 2012. Caderno Variedades, p. 07.

Do Futebol


Em 1919, a imprensa carioca fervilhava com a publicação de uma série de artigos demolidores escritos pelo saudoso literato e anarquista Afonso Henriques de Lima Barreto (1881-1922). Os textos eram parte de uma campanha promovida por renomados intelectuais para conter a disseminação de um esporte, espécie de “germe nocivo”, que ia se transformando, aos poucos, numa mania nacional: o “Football”, ou, como era chamado, “o nobre esporte bretão”.
Liderados por Barreto, a “Liga contra o Football”, como se autoproclamavam, não conseguiu construir uma sede por “questões financeiras”, mas acabou contraindo inimigos à altura: Coelho Neto, sócio/torcedor do Fluminense Futebol Clube, fora talvez o adversário mais ferrenho no campo dos argumentos (contrapropaganda), sagrando-se por intermédio de discursos e entrevistas onde apelava até para as tradições Greco-romanas, com o intuito de anular as investidas da horda dos contrários. O articulista Ricardo Pinto, também oposto às ideias da “Liga”, publicou um artigo ácido, desqualificando o interesse de Lima, afirmando que este não entendia nada de futebol e denominando-o, sarcasticamente, como o Brás Cubas mentor deste movimento tresloucado. Barreto não gostou nada disto.
A “Liga” foi para escanteio, mas, curiosamente, a aversão ao futebol rolou pelos séculos. Há, inclusive, o discurso “demonizador” que desnuda o poder hipnótico deste perigoso “ópio das multidões”.
Em 2008, driblando questões políticas, sociais, econômicas e comportamentais que sempre são priorizadas nas investigações deste esporte, o professor José Miguel Wisnik lançou seu ensaio “Veneno Remédio”. Na obra, bibliografia obrigatória para os amantes do Futebol, Wisnik enfatiza as características encantatórias do “jogo em si”, esporte introduzido e praticamente reinventado em nosso país; esmiúça o caráter aparentemente paradoxal desta modalidade e a apresenta como uma “cifrada atividade criativa” (de construção do imaginário), que não pode simplesmente ser sonegada, pois diz muito a respeito de nossa identidade e formação. Vale!
***
No último domingo, entre os torcedores de meu time, o Santos Futebol Clube, nas arquibancadas do Morumbi, fui testemunha ocular da atuação de uma equipe que “gosta” de Futebol. Neymar, mogiano que já começou driblando terríveis índices de mortalidade infantil, merece uma estátua na frente da prefeitura. Com bola e tudo!

MIRANDA, Rafael Puertas de. Do Futebol. Jornal Mogi News, Mogi das Cruzes, 20 de Maio de 2012. Caderno Variedades, p. 07.

Momentos

"Felicidade? Palavra doida inventada por nordestinas que andam aos montes por aí (...)"
A hora da estrela (1977), de Clarice Lispector

O terrível evento se deu, querido leitor, enquanto aguardava atendimento médico para uma destas consultas rotineiras. Enfastiado com as pinturas que ornavam as paredes do pomposo consultório – começo a acreditar que haja uma disciplina específica de “mau gosto artístico” na grade dos cursos de medicina, dada a quantidade de obras ridículas que enfei(t)am tais ambientes – , decidi folhear distraidamente uma revista de futilidades, daquelas que abarrotam as mesas de salas de espera e são bem propícias a tais infortúnios. Diga-se de passagem, também são conscientemente programadas para durar mais: o famoso recheio “alheio”.
Para minha surpresa, no entanto, entre fotos de batons e modelos insossas, encontrei uma matéria celebrando a grande escritora ucraniana, naturalizada brasileira, Clarice Lispector (nascida Haia Pinkhasovna Lispector; 1920-1977). Os depoimentos, dados bibliográficos e a análise das características marcantes do estilo da prosadora foram muito bem “pescados”. Uma bela fotografia emoldurava uma das páginas da seção. Tudo organizado.
Mas, para minha total angústia e desespero, ao lado da referida foto, jazia a reprodução integral de um medonho (para não dizer “escroto”) poemeto de auto-ajuda, atribuído a autora de “Perto do Coração Selvagem”.
O arremedo, intitulado “Há momentos”, circula pela internet deliberadamente, constando em sites, aparentemente, confiáveis, daqueles que seduzem apressados organizadores de conteúdo que não se dão ao luxo de desmascarar a “autoria desconhecida” destes escritos mal acabados.        
Com Clarice, é fácil.
Primeiro, nunca publicou poemas, somente Romances, Contos e Crônicas. É conhecida pela densidade de suas personagens e tramas psicológicas truncadas.
Segundo, observando sua natureza solitária, introvertida e melancólica (para não dizer depressiva), nunca diria coisas do gênero: “sonhe com o que você quiser”, “a importância das pessoas que passam por sua vida”, “sorria, seja feliz”, “mude”, “tenha felicidade bastante para fazê-la doce”. Se fosse viva, a autora do belo e cruel romance “A hora da estrela”, teria ânsias. Este critério também pode ser empregado com Fernando Pessoa.
Enfim, a Internet é um espaço livre e sempre será. Mesmo assim, é importante “filtrá-la”. Vale!

MIRANDA, Rafael Puertas de. Momentos. Jornal Mogi News, Mogi das Cruzes, 29 de Abril de 2012. Caderno Variedades, p. 07.

quarta-feira, 20 de junho de 2012

Vampiros me mordam!

Na antologia de Ensaios “O lugar do Outro” (Toopbooks/UMC - 1999), do saudoso e competente crítico literário taquaritinguense José Paulo Paes (1926-1998), encontramos o delicioso texto “Bruxaria de primeiro mundo”, onde o literato desqualifica a novela global “Olho no Olho”, escrita por Antônio Calmon.
O dramalhão televisivo aproveitava a onda instaurada pelo mequetrefe imortal “Paul Rabbit” (agora, habitante da Suíça) e trazia às telas uma verdadeira miscelânea de clichês e o maniqueísmo típico de qualquer folhetim desta natureza, imprescindíveis para fisgar o grande público. José Paulo esmiúça a trama fraca, ironizando os destrambelhados elementos constituintes deste oportunista pacotão cultural.
Quando o ensaísta menciona a “neomágica cunicular”, cita o historiador Mário Maestri que, em um “interessante artigo”, investiga as raízes sociológicas daquela corrente a fim de elucidar a estratégia comercial de sucesso empregada pelo autor d’O Alquimista.
Segundo Maestri, o Coelho dá cabo de uma “feliz modernização de temas da ideologia mágico tradicional, na sua vertente europeia” (faria mais sentido o Diário do Boitatá, ou não?), inaugurando, entre nós, a “feitiçaria yuppie” com seus personagens bruxos (ou magos...) descolados, modernos, endinheirados, extrovertidos, sempre envolvidos em tramas ambientadas em países do primeiro mundo “para gáudio do imaginário arrivista e fantasioso do brasileiros de classe média”.
Inclusive, querido leitor, poderíamos distender a terminologia sugerida, atentando para as novas dimensões da narrativa de gôndola de supermercado: “feitiçaria yuppie” seria, hoje, o “sobrenatural clean”, com seus lobisomens índios marombados e vampiros dóceis e perfumados.
Como tenho saudades do arquétipo vampiresco asqueroso, antissocial, anti-higiênico, politicamente incorreto e sem escrúpulos, modelo Mojica/Nosferatu. A senhora religiosa Meyer conseguiu “eclipsá-lo”, ou melhor dizendo, higienizá-lo.
A grande ironia é que o discurso da “castidade” embutido de propósito na trama da carola escritora estadunidense (“devo controlar os meus instintos” – fala do vampiro protagonista à beira do pescoço da donzela-peter-parker-versão-girl) não foi assimilado pelos assíduos leitores tupiniquins.
Mas, agora, como diria um amigo, é “gato morto” e, em breve, pousará na prateleira do esquecimento, ao lado do Coelho. Vamos aos outros!

MIRANDA, Rafael Puertas de. Vampiros me mordam!. Jornal Mogi News, Mogi das Cruzes, 08 de Abril de 2012. Caderno Variedades, p. 07.

Daquilo que não se diz

Há aquela espécie de obra literária, querido leitor, da qual não nos desvencilhamos. Então, perseguir edições variadas, portadoras de diferentes formatos, fortunas críticas, notas, apêndices, curiosidades, acaba se transformando num divertido hábito, beirando, em alguns casos, a própria obsessão. Coisa de quem, por efeito de algum caso incidente, aprendeu a “comer” livros.
Entre os vãos de minhas prateleiras, repousam algumas evidências desta prática. Os Lusíadas (1572), a sublime epopeia do escritor português Luís Vaz de Camões (1524?-1580), por exemplo, é um título multiplicado entre meus guardados.
Encontram-se perfiladas: a edição portuguesa em papel bíblia das Obras de Luís de Camões, da Lello & Irmão – editores (com as mais notáveis variantes); a completa e didática edição, organizada pelo professor português Emanuel Paulo Ramos e impressa pela Porto Editora (acompanhada de anotações, fotografias, imagens e notas complementares); a elucidativa “A Chave dos Lusíadas”, do mestre José Agostinho, publicada pela livraria Figueirinhas (acompanhada de notas e paráfrase explicativa); a monumental edição lançada pela editora LEP e organizada pelo instituto de estudos portugueses da Universidade de São Paulo (com ilustrações de Begas, Liezen-Mayer, Kostka e Ludwig Burger).
Mas, a edição que destaco neste humilde rabisco é uma singela reprodução fac-similar, publicada, sem mais informações, pela Takano Editora Gráfica como parte integrante de “A Revista”.
O molde do livro fora a primeira edição do bibliófilo José Midlin. A bem acabada publicação não representa nenhuma novidade para os conhecedores da impressão do século XVI. A curiosidade maior está perdida entre seus Cantos.
Os responsáveis pela referida versão publicaram também as páginas do Jornal “O Estado de São Paulo” que sofreram intervenções da ditadura militar brasileira – na época, o periódico decidiu que toda matéria “censurada” seria substituída por um trecho da obra épica camoniana. Em seguida, apresentam a versão integral do texto “mutilado” (como o texto “A epidemia do silêncio”, de 26-07-1974, onde o articulista Clovis Rossi denuncia o ocultamento de um surto de meningite). Vale!
***
Ainda hoje, em Suzano, ocorre a louvável “Feira Internacional do Livro”. Espero que esta iniciativa vitoriosa, inédita e inesquecível se transforme em tradição. Congratulações aos responsáveis.

MIRANDA, Rafael Puertas de. Daquilo que não se diz. Jornal Mogi News, Mogi das Cruzes, 22 de Abril de 2012. Caderno Variedades, p. 07.

Bobók e o Boboca

Em janeiro de 1873, o escritor russo Fiódor Mikhailovich Dostoiévski (1821-1881) assumia, para o desespero e nojo do meio intelectual e literário do qual fazia parte, o cargo de redator-chefe do reacionário e tendencioso semanário “Grajdanin”. Sua primeira publicação na referida “casa” fora o delicioso conto “Bobók”, devidamente acomodado na recém inaugurada seção “Diário de um escritor”. Neste tempo, o autor do imperdível romance Os Demônios (1871) sofria ataques severos da crítica rala que o enxergava como um escritor de linguagem truncada, beirando o descaso.
O texto “Bobók” (a tradução do russo indica “fava”), narrado em primeira pessoa, pode ser facilmente alocado na galeria de obras denominadas “narrativas fantásticas” e é também uma espécie de defesa profundamente irônica e inteligente de seus princípios literários frente às superficiais investidas dos soberbos e enfadonhos críticos de seu tempo.
Na trama, somos apresentados ao escritor/personagem Ivan Ivánitchi que – ao contrário de alguns artistas mogianos(?) que andam soltos por aqui e que gostam muito de se autopromoverem (ab)surdamente, utilizando, inclusive, cartas de colegas das artes para depois raivosamente os desqualificarem, em arroubos egoístas e pouco compreensíveis irradiadores também de uma ditadura do tema a ser desenvolvido por intelectuais, seus outros desafetos – admite-se honestamente como um perfeito imbecil (e, claro, é muito bom).
Seus escritos são renegados por editores que os acham “pesados” demais para o gosto do grande público e, para sobreviver, escreve mediocridades, destas que estão por aí a abarrotar as prateleiras tediosas das “lojas de livros”. Sua obra encomendada mais famosa é “A arte de agradar às mulheres” (a antropologia da futilidade).
Certo dia, enquanto acompanhava o enterro de um conhecido, acaba se deitando sobre as lajes frias do cemitério e, subitamente, começa a escutar o diálogo dos mortos enterrados ao seu redor. Os defuntos, não desligados de seus hábitos e de suas “classes”, desenvolvem um maravilhoso debate sobre as convenções mundanas, contrastando-as com a condição de “enterrado”. Depois de muita polêmica e pudores inúteis, decidem se desvencilhar de suas roupas, como forma de protesto.
Vale! Principalmente a primorosa edição da Editora 34 (2005), seguida da análise brilhante do competente professor e crítico brasileiro Paulo Bezerra.

MIRANDA, Rafael Puertas de. Bobók e o Boboca. Jornal Mogi News, Mogi das Cruzes, 19 de Junho de 2011. Caderno Variedades, p. 03.

A Máquina

No dia 02 de Janeiro de 2000, o Jornal Folha de São Paulo lançava, sem a intenção de perpetuar uma escala de juízos de valores (?), uma edição especial do seu caderno “mais!” intitulada: Os cem melhores poemas do século.
Cada um dos dez críticos selecionados para compor o júri era responsável pela confecção de uma lista com os dez poemas mais relevantes do século XX. Em seguida, os dados eram cruzados (um verdadeiro mosaico caótico) e os textos reincidentes, com as melhores colocações, foram aglutinados numa única lista, que indicava as dez maiores obras do referido período.
Nesta pitoresca oportunidade, revestida de um aparente caráter fomentador do estímulo à leitura e ao debate, os especialistas (ou, melhor dizendo, quatro deles) foram unânimes: o poema “A máquina do mundo”, de Carlos Drummond de Andrade, era a composição poética mais relevante de nossa literatura. O poeta itabirano, inclusive, figurava em todas as listas, sendo reverenciado, no entanto, por diferentes composições de sua autoria. O resultado foi, curiosamente, justo.
O poema, que integra o livro “Claro Enigma” (1951), dialoga com uma das mais emblemáticas e reverberantes metáforas da era moderna, em circulação desde a antiguidade e fundamentada na premissa de que o Mundo seja dividido em duas partes em constante interação – cosmos: a elementar e a celestial.
Camões, no Canto décimo d’Os Lusíadas, reafirma sua profunda erudição, quando nos apresenta a ninfa Tétis guiando Vasco da Gama até a própria “Máquina do Mundo” para que este pudesse vislumbrar a sina de sua pátria; recompensa “triste” de seus feitos heroicos.
No poema de Drummond, somos apresentados a um eu-lírico que, ao entardecer, caminha vagarosamente pelas pedregosas estradas de uma áspera Minas, sem “rocambole”, quando, subitamente, é assaltado pela presença da máquina. Justo ele, que se esquivava de qualquer revelação, tinha a permissão de contemplá-la; e sedutora. Carpiu-se, todavia, do direito de possuí-la, ignorou-a. Sabia o bastante a respeito de si mesmo. O mundo que basta.
***
Em tempo: Drummond sai agora de outra “máquina”! Desde o início do ano, a Editora Companhia das Letras (SP) tem reeditado suas obras. Claro Enigma, o segundo título lançado, integra a nova série que faz jus ao capricho da casa: fortuna crítica da melhor qualidade, diagramação exuberante e profissional estabelecimento do texto. Vale!

MIRANDA, Rafael Puertas de. A Máquina. Jornal Mogi News, Mogi das Cruzes, 01 de Abril de 2012. Caderno Variedades, p. 07.

Diletante de Ambientes

Ontem, pela tarde, uma prateleira de minha cansada estante despencou. Não houve barulho, não houve caco, revelações assustadoras, tampouco vítimas. Simplesmente, apareceu estatelada sobre o “andar” de baixo do próprio móvel sisudo. Um destes típicos incidentes cotidianos silenciosos que custam a ser notados e trazem um pouco de caos à organização de tudo, querido leitor. Em verdade, tudo estava posto.
Ajoelhei-me, então, para socorrer algumas dezenas de queridos livros e, neste instante, tão rápido como um raio, saltou-me às mãos um pequeno Romance (gênero narrativo) que decerto já sobrevivera a alguns descartes e doações (é muito bom distribuir livros) e ainda não fora lido, perdido entre as frinchas obscuras de minha estante. Agora, redescoberto.
A pequena edição continha na capa a reprodução de uma belíssima fotografia em preto e branco de uma estação de metrô parisiense e era guarnecida por uma pequena tira de papel, onde jaziam as palavras entusiasmadas de um dos grandes prosadores norte-americanos da atualidade, o grande escritor Paul Auster (ainda escreverei algo a respeito de uma de suas mais empolgantes obras: “A noite do oráculo”, de 2003). A “casca” do achado era convidativa, restava provar o “miolo”.
Tratava-se da obra “Voz sem saída” (Ed. Nova Fronteira, 2006 – ainda disponível nas livrarias virtuais), da jovem escritora francesa Céline Curiol. Lançada em 2005, apresenta um narrador em terceira pessoa que revela o monólogo interior (indireto) de uma jovem anônima e apagada, referida por ele, em toda trama, simplesmente como “Ela”.
A moça é um ser indiferente que se “arrasta” pelos recantos mais sombrios da triste cidade luz (uma verdadeira “diletante de ambientes”, para fazer jus ao grande personagem Simão, do saudoso Ribeiro Couto) em busca de pequenas aventuras capazes de “cauterizar” sua claudicante monotonia e apagar, por alguns momentos, as lembranças do triângulo amoroso vivenciado por “Ela”, seu amigo/amado e Ange, uma jovem espetacularmente bela.
Curiol recria uma realidade onde a dinâmica dos relacionamentos humanos se apresenta de maneira confusa e encantadora, fugindo à complicação amorosa rasteira das telenovelas. As personagens inseguras se debatem em busca de soluções para si mesmas, até as últimas consequências de seu atos, de suas covardias. De resto, a neurose típica da “modernidade líquida”. Vale!

MIRANDA, Rafael Puertas de. Diletante de Ambientes. Jornal Mogi News, Mogi das Cruzes, 25 de Março de 2012. Caderno Variedades, p. 07.

Viva?

A primeira cena se descortina, desafiando a imaginação da plateia. Nela, desfilam duas figuras curiosas, para não dizer “quixotescas”: um gorducho, com ares soberbos e roupa estranha, seguido de um lacaio magricela carregando pesada bagagem sobre o lombo de um asno cansado. A fórmula simples é rapidamente desvendada pelo espectador atento: trata-se do patrão e do escravo, mas ainda certa estranheza paira no ar. São, respectivamente, Dioniso - o próprio deus do teatro, fantasiado de Herácles - e seu servo Xântias, a reboque.
Começa o diálogo e, aos poucos, o público vai se familiarizando com a empreita da exótica dupla: Dioniso, após a morte de Eurípedes (último grande poeta de Atenas), repudiando o talento medíocre dos artistas ainda vivos, seus egos inflados e suas composições decadentes, decide “descer” ao Hades a fim de ressuscitar o autor de Medeia. Quando lá chega, acaba desprezando este e resgata outro da morada dos mortos, que julgava mais competente e menos polêmico: Ésquilo.
Estes são os argumentos da deliciosa e premiada comédia “As Rãs” (gr. Βάτραχοι), do dramaturgo ateniense Aristófanes (V a.C.). Espécie de paródia e crítica do próprio ambiente literário, foi representada pela primeira vez em 405 antes de Cristo. Naquele tempo, querido leitor, notamos já a prática ainda hoje comumente difundida de sentenciar a “morte da poesia”.
Contrariando esta sentença, mesmo que, para isso, sujeitemo-nos a exalar “eau de decreto”; na semana passada, comemoramos o “Dia Nacional da Poesia” (14 de Março), providencialmente alocado na data de nascimento de Antônio Frederico de Castro Alves, aquele que - sob pena de desentocar quilos de pó e teias de aranha -, saído de Curralinho (hoje, Município de Castro Alves - BA, ainda bem!) é, sem sombra de dúvidas, um dos maiores poetas brasileiros do século XIX.
As comemorações foram limitadas, tímidas, invisíveis. Não houve bolo, passeata, rua pintada, desfile, trânsito parado, traje colorido, banda, banner, bandanas, duplas sertanejas, tiros de canhão, barraca, comoção ou sarau.
A poesia não morreu, mas se arrasta. Principalmente, porque leitores sensíveis são os responsáveis pela sua total nutrição. Onde estarão em tempos tão embrutecidos? Onde andam lendo ainda Poesia?
O saudoso poeta Paulo Leminski a dizia um “inutensílio indispensável”.
Há quatro dias, acendi uma vela: porque também ela, uma religião.
Vale!

MIRANDA, Rafael Puertas de. Viva?. Jornal Mogi News, Mogi das Cruzes, 18 de Março de 2012. Caderno Variedades, p. 07.

Casa e Universo

Dedico este artigo ao competente agente cultural Frederico Barbosa
No delicioso ensaio “A Poética do Espaço”, o saudoso poeta francês Gaston Bachelard, ao analisar o fenômeno psicológico estrutural do apego à casa, afirmava: “(...) a casa é nosso canto no mundo. Ela é, como se diz amiúde, o nosso primeiro universo. É um verdadeiro cosmos”.
Tal analogia, querido leitor, serviria perfeitamente para ilustrar a real dimensão de um dos espaços públicos mais entusiasmantes de que se tem notícia: o Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura (Casa das Rosas), em São Paulo.
Frequentador assíduo desde sua inauguração, perdi a conta das inúmeras situações já vivenciadas por mim naquele recanto: lá, frequentei oficinas de teoria do poema, assisti a exposições, espetáculos, conheci escritores célebres e diletantes, participei de saraus madrugada adentro, emprestei livros da biblioteca (admite-se o empréstimo para “forasteiros”), fiz farra ao encontrar colegas do Alto Tietê, integrei a “tropa” de artistas mogianos regida pelo grupo Entremeio Literário que, em 2008, lançou lá o livro “Poesia e Arte Mogiana” (ainda estão na lembrança nosso sarau, a música de Mateus Sartori e a apresentação de Fernanda Moretti que, à noite, entre as roseiras do jardim da Casa, deslumbrou o público com sua performance – que orgulho de todos!), divulguei meu livro digital de poemas, encontrei-me com minha esposa, Raquel, enquanto ainda namorávamos, gastei horas nas confortáveis poltronas do andar superior a folhear livros...
Portanto, não posso pensar neste ambiente de forma imparcial. Para mim é um exemplo (e não estou aqui reivindicando “sala” igual em nossa querida cidade, pois acredito que a formação dos artistas e do público anteceda a ânsia do espaço – do contrário, será somente mais um “aparelho” repleto de moscas e egos). A Casa das Rosas é parte da minha existência dedicada à poesia. Vale!
Tudo isso, no entanto, não vivenciou o desavisado senhor Luis Dolhnikoff, que, num artigo tendencioso, publicado num site qualquer da internet, desqualificou e minimizou as ações da Casa das Rosas, utilizando, para isso, um nojento arcabouço teórico oriundo da lógica meritocrática e fria dos gestores clássicos, desprezando, assim, as múltiplas possibilidades da atividade artística humana e, sobretudo, dando mostras claras de sua curta visão. Ainda bem não ser levado a sério!

MIRANDA, Rafael Puertas de. Casa e Universo. Jornal Mogi News, Mogi das Cruzes, 11 de Março de 2012. Caderno Variedades, p. 07.

Polêmica

Aos vinte e quatro anos, o escritor maranhense Aluísio Tancredo Gonçalves “Belo” de Azevedo, para o terror da “pobre” e provinciana cidade de São Luiz, lançava o romance “O mulato” (1881).
A obra, seguindo a estrutura ortodoxa do Naturalismo, estética inaugurada pelo escritor francês Émile Zola, narra a história do belo Raimundo, jovem mulato que, protegido por um tio, forma-se em direito na Europa.
Quando retorna ao Maranhão, com a intenção de investigar suas origens “ocultadas”, é apresentado à prima Ana Rosa, que já fora prometida ao caixeiro escroto Luís Dias que, no entanto, era branco.
O leitor já deve supor a fórmula: Ana Rosa e Raimundo se apaixonam perdidamente. Ela engravida. Luís adoece de ciúmes. Pressionado, Raimundo decidi fugir com Ana Rosa. Luís descobre o plano e mata o mulato com um tiro certeiro. Ana “perde” a criança. Luís se casa com Ana (Opa?). O casal é enredado pelo típico aburguesamento cinzento do século XIX (o fim da aventura de existir). E vivem, os medíocres, felizes para sempre: o assassino e a donzela.
Sentiu? Há muito mais na trama. Espero que o leitor “agarre” o texto e se acostume com a veia polêmica deste grande escritor que, até ao divulgar um novo livro, “causava” (como os jovens dizem hoje por aí):
“(...)Um homenzarrão, de sobrecasaca e óculos, de pé, com um papelucho entre os dedos, brada e gesticula:
― Que porcaria é esta?! Estou a comer o pão e trinco isto, O Homem! Que quer dizer isto? E mostra, indignado, o papelucho. Aluísio levanta-se muito grave e diz:
― O Homem, a que se refere este papel, é aquele que, segundo as profecias, deve trazer ao mundo a palavra da verdade, que, como o meu amigo sabe, é o pão espiritual. Por isso, naturalmente, escolheu, para veículo, o pão. Se o cavalheiro se revolta contra O Homem, que achou no pão, por que não brada contra a hóstia, por exemplo, que também contém, em substância, um homem? Saiba o amigo e saibam quantos aqui se acham que este homem, que aqui está, é um dos tipos mais perfeitos da criação – 300 páginas, edição Garnier, e aparecerá depois de amanhã. Tenho dito. E torna á mesa. A gargalhada explode. E na rua do Ouvidor, e, à noite, nos teatros, o Homem do pão é o assunto das palestras.” (in: Aluísio de Azevedo: uma vida de romance, de Raimundo de Menezes).
Em tempo: mesmo que digam o contrário, há preconceito no Brasil, sim, e da pior espécie: escamoteado.

MIRANDA, Rafael Puertas de. Polêmica. Jornal Mogi News, Mogi das Cruzes, 04 de Março de 2012. Caderno Variedades, p. 07.

Mário!? Que Mário?

Mário Raul, que, há exatos 67 anos e um dia, falecia em sua querida cidade natal, São Paulo. Bacharel em Ciências e Letras, em 1909. Que, em 1910, abandonou o insosso curso da Escola de Comércio Álvares Penteado porque se enfurecera com um tradicional e sonífero professor de Língua Portuguesa.
Formado em Piano pelo Conservatório Dramático e Musical de São Paulo. Crítico das Artes. Poeta radical, introdutor dos versos livres por estas bandas. Consagrado como um dos mentores da Semana de Arte Moderna (1922). Grande romancista e contista, que flertava com a recém-digerida psicanálise freudiana.
Autor de uma das mais belas obras da Literatura nacional: Macunaíma (1928), rapsódia metida a romance, escrita em seis dias numa “chacra” em Araraquara, que fixa as aventuras e peraltices de “sarapantar” do personagem homônimo, um índio feio e preguiçoso, “sem nenhum caráter”: porque um anti-herói e também porque, na “trama-conversa-fiada-por-papagaio”, desfila alegoricamente com as características biotípicas das três etnias fundadoras da nossa cultura: o índio, o negro e o branco.
O livro funde e funda ditados populares, lendas, superstições, ritos; um verdadeiro almanaque da cultura popular. Macunaíma é o próprio Brasil carnavalizado, autorizado pelo canto paralelo da paródia, um protesto (em tempo: o Carnaval como forma permitida pela sociedade para contestar a si mesma se enfraqueceu, infelizmente: como gostaria de ver o Bloco do Santo Antônio Preso na Ponte Grande, o Bloco do Eu não tenho Ficha Limpa, o Bloco do 62%, etc).
Mas, então, o Mário! Uma das grandes referências na pesquisa do Folclore Brasileiro, antropólogo, entusiasta sincero da brasilidade. Que defendia o “Boi” como elemento unificador da cultura do povo, que investigava as “Músicas de Feitiçaria” brasileiras, os motes, os arquétipos literários, como “O sequestro da Dona ausente”, que para ele era a senhora do sentimento amoroso na criação popular e também mulher inacessível incorporada pelos poetas do ultrarromantismo.
O Mário que providenciara uma expedição que percorreu o Brasil de ponta a ponta, registrando músicas, ritos e manifestações folclóricas (o resultado desta empreita é apresentado em uma exposição fixa e gratuita do Centro Cultural São Paulo). Este é o Mário de Andrade e ele está por aí, em alguma grota, rindo muito bem de um Brasil que teima em não se entender. Vale!

MIRANDA, Rafael Puertas de. Mário!? Que Mário?. Jornal Mogi News, Mogi das Cruzes, 26 de Fevereiro de 2012. Caderno Variedades, p. 03.

A expectadora imaginária

Em 1877, era publicado pela Typographia da Provincia de São Paulo, sob os cuidados de José Maria Lisboa, o esperado “Almanach Litterario de São Paulo para 1878”.
Exatamente, na página 19 da referida obra, uma raridade, encontra-se o curioso artigo “Um soldado da Independencia”, onde o senhor Rangel Pestana corrige um jornal da capital do Império que noticiara erroneamente, no ano de 1877, a morte da última testemunha do brado famoso de 1822.
Revoltado, Pestana argumenta que não fora considerado o senhor Rodrigo Gomes Vieira de Almeida, soldado do batalhão do primeiro Imperador, o qual “assistiu nas campinas do Ypiranga ao grito da Independência” e que, agora, maduro, morava na cidade na cidade de “Mogy das Cruzes”, junto de sua esposa, d. Leduína Maria da Conceição.
Ainda, nesta mesma cidade, Rodrigo “exerceu vários empregos de nomeação do governo e eleição popular e no correr dos longos annos tem sido subdelegado, collector de rendas provinciaes e geraes, vereador e eleitor”, chegando, inclusive, a ceder terras de sua chácara para a construção da linha férrea SP-RJ. Por onde andará o soldado Rodrigo?
***
Fico imaginando, querido leitor, como seria curioso encontrar indícios de que um cidadão mogiano tenha participado do evento, propositadamente alocado no ano de 1922, e que representou (mesmo que alguns crápulas afirmem o contrário) a segunda independência do Brasil, uma verdadeira independência de natureza cultural: A Semana de Arte Moderna.
Chego a imaginar uma senhorita mogiana, mãos enluvadas, trajando os últimos gritos da moda paulistana, fã de Kiki de Montparnasse (há de ser liberal, se me permitem!) e Anita Catarina, exalando resquícios das gotas de Arys, desviando de lancias, fords, gritos klaxons de uma cidade que fervilha, para se acomodar, deslumbrada, num dos furos da plateia do jovem Teatro Municipal de São Paulo.
Em qual dia? No mais quente: dia 15 de fevereiro. Revolta, ênfase, cabeças louras e pernas. No meio das vaias e dos relinchos, ainda escuta Menotti bradando: “Somos o escândalo com duas pernas, o cabotinismo organizado em escola”. "Os Sapos" ecoa, sepultando de uma vez a monotonia encalacrada do poeta parnasiano. E ela ri.
Esta é a singela história de minha expectadora imaginária. Por que razão se perceba não há de ser ela, a moça, mais verdadeira que o Grito de Independência do Pedro? Viva o Carnaval!

MIRANDA, Rafael Puertas de. A expectadora imaginária. Jornal Mogi News, Mogi das Cruzes, 19 de Fevereiro de 2012. Caderno Variedades, p. 03.

Um Romance bom

Aconteceu numa livraria, onde havia encomendado o suculento livro “A teoria do Romance”, do filósofo húngaro Georg Lukács. Ao retirar a encomenda, percebi que a sombria balconista, destas meninas que usam pesada maquilagem dark, fitava-me como se quisesse desenbuchar alguma coisa e não tivesse coragem.
Intrigado, devo ter feito aquela cara típica de “Algum problema? Diga, minha filha, não se acanhe!”, porque, num átimo, aproveitando-se de minha condescedência, a moça metralhou:
“―Você tem problemas de relacionamento, não é?”
Fiquei completamente pasmo, tentando imaginar o motivo que levara a vampiresca moçoila a chegar a tal conclusão. Querido leitor, tenha a plena certeza de que várias hipóteses surgiram na minha humilde cabeça. Meu semblante deve ter me denunciado novamente, pois a jovem completou, sem piedade, quase íntima:
“― Agora você saberá lidar com um romance! É tão simples!”
Sim! Claro! “A Teoria do Romance”. Não era o meu cabelo despenteado, meu guarda-chuva made in china, meu aparato pedagógico, tampouco minha braguilha aberta (aliás, foi a primeira coisa checada). A jovem cometera a clássica confusão com os significados da palavra “Romance”, imaginando o livro de Lukács como uma espécie de cartilha para bem sucedidas ligações amorosas.
Na verdade, a obra é um delicioso estudo do gênero narrativo em questão, onde o filósofo húngaro, associando romance à epopeia, sugere um “gênero de literatura epopéica” que é contrastado com a tragédia.
Hoje, vivemos o verdadeiro apogeu da bibliografia especializada que esmiúça atentamente os limites e as características deste gênero tão praticado e responsável pela fixação das mais belas e profundas tramas já imaginadas.
Ainda assim, às vezes, somos surpreendidos quando nos deparamos com obras como “Museu do Romance da Eterna” (Cosacnaify, 2010), do escritor argentino Macedonio Fernández (1874-1952).
Na belíssima e lúdica edição brasileira está impressa a tradução de um dos maiores romances da literatura argentina que teima o contrário: totalmente antirrealista, o texto é um enorme prólogo fragmentado (mosaico) que anuncia um “Romance fenomenal” que nunca chega. O experimentalismo de Macedonio abala todas as concepções seguras a respeito do que é o “Romance”. Genial.
Tive, então, que discordar das palavras de minha colega dark: “Nem sempre um Romance é simples e é bem melhor assim”. Vale!

MIRANDA, Rafael Puertas de. Um Romance bom. Jornal Mogi News, Mogi das Cruzes, 12 de  Fevereiro de 2012. Caderno Variedades, p. 03.

O Rosa, o Anjo e a Lista

Estes dias, ganhei, de um estimado amigo, uma caixa intitulada: “Os caminhos do sertão de João Guimarães Rosa” (Ed. Nova Fronteira, 2011). Nela, além de uma edição bem acabada do romance “Grande Sertão: Veredas” (incluindo, como capa, a folha datilografada que contém o primeiro título da obra, depois alterado: “Veredas Mortas”), havia um livro de textos críticos e depoimentos a respeito de Rosa e também uma edição fac-similar das cadernetas preenchidas pelo escritor durante a viagem, em maio de 1952, em companhia da comitiva de Manoel Nardy (“Manuelzão”), conduzindo uma boiada pelos campos sem fim das gerais.
“Grande Sertão: Veredas”, lançado por Rosa em 1956, é dedicado a sua mulher “Ara”, ou Aracy Moebius de Carvalho. A bela paranaense trabalhava no consulado brasileiro na Alemanha, em meados de 1938, quando conheceu João, então cônsul adjunto em Hamburgo.
O jovem casal protagonizou, durante a Segunda Guerra, uma ousada campanha, pouco alardeada e digna de um bom filme de espionagem: os dois ajudaram centenas de judeus perseguidos pelos cães hitleristas a fugirem para o Brasil, contrariando as ridículas cotas de vistos impostas pela política anti-semita do Estado Novo.
No pós-guerra, João e o “Anjo de Hamburgo” – como carinhosamente Aracy é conhecida pela comunidade judaica de São Paulo – receberam o reconhecimento do estado de Israel, sendo homenageados no Jardim dos Justos entre as Nações, no memorial Yad Vashem.
Antonio Callado disse certa vez que Rosa era “intensamente autobiográfico”, bastava lhe dar uma única chance e lá estava ele falando de si mesmo, contando suas peripécias. Imagino-o como seu personagem Riobaldo, embalado por uma vereda infinita de causos, no pouco do se nem for, luzlino, à sombra de sequer. Vale!

***
Atenção, Vestibulando! Segue a lista unificada (FUVEST/UNICAMP) de obras literárias que serão abordadas nos próximos três vestibulares.
- Viagens na Minha Terra (1846) - Almeida Garrett
- Memórias de um Sargento de Milícias (1852/53) - Manuel A. de Almeida
- Til (1871) - José de Alencar
- Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881) - Machado de Assis
- O Cortiço (1890) - Aluísio Azevedo
- A Cidade e as Serras (1901) - Eça de Queirós
- Capitães da Areia (1937) - Jorge Amado
- Vidas Secas (1938) - Graciliano Ramos
- Sentimento do Mundo (1940) - Carlos Drummond de Andrade
Olhos a postos! Ler ou não ser, eis a questão!

MIRANDA, Rafael Puertas de. O Rosa, o Anjo e a Lista. Jornal Mogi News, Mogi das Cruzes, 29 de Janeiro de 2012. Caderno Variedades, p. 03.

Da Sina

Num belíssimo ensaio de 1952 (“O suplício do Papai Noel”), publicado no Brasil pela Editora CosacNaify em 2008, o saudoso professor e antropólogo estruturalista francês Claude Lévi-Strauss analisa brilhantemente a referida crença natalina diante do pitoresco acontecimento de 24 de Dezembro de 1951, quando, na cidade francesa de Dijon, as autoridades religiosas decidiram simplesmente “queimar” o Papai Noel no átrio da principal catedral, alegando que a figura vermelha (ou verde) era responsável por uma preocupante “paganização” do dia do Natal, “desviando o espírito público do sentido propriamente cristão dessa comemoração”. Como expectadores deste sinistro espetáculo pirotécnico, convocaram as crianças que habitavam os orfanatos religiosos da cidade. Strauss empolga-se com o evento, vendo nele uma manifestação sintomática de uma evolução dos costumes e crenças, ao mesmo tempo em que anuncia o triunfo do culto ao velhinho.
“Cocas-Colas” a parte, em tempos de mercadoria, onde o sublimar desejo de consumo ofusca qualquer reflexão, jamais nos preocuparíamos com os reais significados de um personagem tão badalado pelas vitrines. No entanto, ao transmitir esta tradição, fazendo crer as crianças que o barbudo existe de fato, ajudamo-nos a nós mesmos a acreditar na vida, seja ela “Severina” ou não. Vale!
***
Sina Pequenina

O Símbolo é a neve,
a criança importante na manjedoira,
a casinha com chaminé,
mas chovia gota grossa
e, no frio molhado,
os olhos de um menino,
como árvore luminosa,
brilhavam a falta.

Não há prece,
não há casa,
não há gente,
não há ceia farta,
tampouco o presente.
Só o menino pequeno,
no enorme egoísmo da noite;
papelão ignorado,
presépio do abandono.

Se alguma espécie de deus o protegia, não sei.
Tarefa demais para tanto.
............
E, enquanto isso,
na prateleira da loja,
um Natal diferente estava à venda
e todo mundo acreditava.
MIRANDA, R. P. Rinoceronte em Cápsula. Mogi das Cruzes(SP): 2010.

MIRANDA, Rafael Puertas de. Da sina. Jornal Mogi News, Mogi das Cruzes, 22 de Janeiro de 2012. Caderno Variedades, p. 03.

Meendinho

Há algum tempo, talvez oito anos ou mais, iniciava uma intensa pesquisa literária, atiçado por meus pitorescos professores universitários, a respeito de uma belíssima cantiga de amigo medieval, como estas que florescem nos primeiros capítulos dos tradicionais e insossos manuais de literatura.
A composição, um dos mais belos exemplos do gênero, é a única obra do jogral galego Meendinho (também conhecido como Meendiño – XIII d.C.), artista que vivera entre os condados que circundam a Ria de Vigo, espécie de língua de oceano para dentro do continente, fingindo rio, numa região que hoje faz parte da Espanha (no passado, Galiza). Acredite, querido leitor, estou agora mesmo entre as minhas anotações empoeiradas, desentocadas de meu sisudo arquivo de plástico. Logo no início da pilha, encontro o resultado da pesquisa no respeitável “Centro Ramón Piñeiro para a investigación en humanidades”, uma das maiores bases de dados da lírica profana galego-portuguesa, que ainda é disponibilizada via internet (iniciativa invejável). Depois, desfilo os dedos entre as cópias do fac-símile dos Cancioneiros da Vaticana e da Biblioteca Nacional, onde está manuscrita a mesma composição.
A marinha "Sedia-m' eu na ermida de San Simión" (transcrição do primeiro verso da primeira cobra) pode ser entendida também como uma cantiga de desespero. Nela, uma jovem donzela (“fremosa”) espera diante da Ermida (capela) do ilhéu de San Simon (na Ria de Vigo) o retorno de seu amado. Aguarda, ansiosa, algum sinal ou chegada de navio, mas o tempo passa, a maré sobe e a jovem, tardiamente, percebe que não conseguirá escapar das ondas bravias que a circundam. A resignação e o lamento.
Percorro minhas anotações que destacam os recursos retóricos empregados, marcas da simplicidade lírica da expressão trovadoresca: leixa-pren, paralelismo literal, palabra volta, rima derivada, etc; uma viagem. O leitor já deve se perguntar o motivo deste resgate e ele não tarda.
Pela rede social, recebi um link de um colega português divulgando o videoclipe do trabalho da cantora brasileira Socorro Lira, intitulado “Cores do Atlántico”, onde reinventa as melodias de cantigas de amigo. No vídeo (in: Vimeo), Lira interpreta a cantiga de Mendinho, abrasileirando-a. O ambiente da releitura é justamente a ilha de San Simon. Um destes trabalhos imperdíveis de que não se tem notícia em terras tupiniquins. Vale!

MIRANDA, Rafael Puertas de. Meendinho. Jornal Mogi News, Mogi das Cruzes, 15 de Janeiro de 2012. Caderno Variedades, p. 03.

Da coincidência

Em 1948, o saudoso escritor maranhense Josué Montello (1917-2006) lançava sua primeira obra em prosa: “A luz da estrela morta”. Neste surpreendente e perturbador romance filosófico, bem diferente dos modelos sistematizados e desgastados próprios dos modernos romancistas nordestinos, o personagem narrador Eduardo, um dramaturgo que passa por uma espécie de bloqueio criativo, revela-nos suas mais íntimas angústias diante da inexorável passagem do tempo – como bocejaria Machado de Assis: “Matamos o tempo; o tempo nos enterra”. Esta tempestade interior é amplificada por um corriqueiro acidente: o antigo relógio carrilhão, que herdara do avô, parara de funcionar subitamente.
Com uma intensidade hipnótica, a narrativa nos conduz aos abismos mais profundos da experiência humana. O jovem solitário Eduardo, que perdera os pais quando criança e que fora criado pelo avô já falecido (espécie de espectro no romance), reconstitui, de maneira desconexa e febril, o próprio passado em busca de respostas para a obsessão doentia que lhe fragiliza os nervos: acredita que a última marcação estática dos ponteiros do relógio seja uma espécie de agourento presságio do exato instante de sua horrenda e violenta morte, fantasiada por seus desvairios “herdados”.
A obra, à margem de qualquer manual, mostra toda a força deste escritor brasileiro que, diferente de muitos “mágicos”, mereceu sua imortalização na, hoje chinfrim, Academia Brasileira de Letras.
Uma curiosidade pitoresca, no entanto, rodeia esta deliciosa obra. Em 1956, enquanto passeava por uma livraria no Peru, Montello viria a vivenciar o que chamara de “a mais aflitiva de todas as emoções vividas como escritor”.
Acontece que, perambulando entre as prateleiras, encontrou o romance “O Relógio”, do escritor italiano Carlo Levi (1902-1975). Interessado pela coincidência, decidiu folhear as páginas da edição espanhola e, para seu espanto, o livro continha exatamente o mesmo tema, compartilhava a mesma técnica; em suma: uma espécie de decalque de sua obra aqui mencionada.
O escritor brasileiro, que num primeiro momento, esforçou-se para lembrar se havia lido a obra italiana, respirou aliviado quando descobriu que o seu livro fora publicado dois anos antes: O relógio era de 1950. Ainda, deu um jeito de publicar um artigo na Itália, intitulado: “Dois relógios entre a coincidência e o plágio”.
Resta saber se o judeu italiano “garfou” a história do brazuca ou é apenas uma grande coincidência. De qualquer forma, vale!

MIRANDA, Rafael Puertas de. Da coincidência. Jornal Mogi News, Mogi das Cruzes, 18 de Dezembro de 2011. Caderno Variedades, p. 03.

quarta-feira, 6 de junho de 2012

Nhô Bento

Fac-símile do Frontispício da primeira Edição de "Rosário de Capiá"(1946), de Nhô Bento.
Em 1946, o poeta José Bento de Oliveira (21 de Março de 1902 - 12 de Janeiro 1968) – nascido na cidade litorânea de São Sebastião(SP) – lançava aquele que viria a ser o seu primeiro e último livro de poemas, intitulado “Rosário de Capiá”(F. Lanzara), espécie de antologia de 58 poemas de sua autoria. Nesta obra raríssima (sem reedições), embora dedique um texto aos conterrâneos praianos, José, que se mudara para São Paulo na juventude e apresentava-se artisticamente contando “causos” e declamando versos como o impagável “Nhô Bento” (ganhara, inclusive, um programa na rádio Gazeta, em São Paulo, onde divulgava os seus trabalhos – o áudio de alguns deles podem ser encontrados no Youtube), afasta-se da tradição caiçara ao empregar uma bem elaborada e caricatural linguagem, a fim de retratar os costumes e tradições do homem do interior. Um verdadeiro marco da cultura caipira.
O poeta convocou para ilustrar a edição uma verdadeira “liga extraordinária” de artistas da época: Belmonte, A. Esteves, Bilú, Amaro e Nino Borges; o que resulta na alta valoração da edição completa em nossos dias.
Vinil que contém faixas com declamações de Nhô Bento.
(Catullo da Paixão Cearense, por Lima Duarte, e Nhô Bento declamando poemas de sua autoria. RGE discos do Brasil, Mono, Encarte, 1989, Reedição - Lançado primeiramente na década de 60.)
Sua poesia, essencialmente simples, tem o gosto da vida cabocla. Interessante é que, no mesmo ano, o escritor mineiro Guimarães Rosa, apropriando-se também dos falares populares e regionais, lançava seu primeiro livro de contos, “Sagarana”. Mas, se naquele sobra pesquisa respeitosa (com direito a vocabulário nas últimas páginas) e inocência, no Rosa transborda a experimentação, a estilização, a temática universalizante. Sobretudo, obras “primas”.
Entretanto, o elemento mais curioso da brochura do “caiçara-poeta-caipira” é o prefácio entusiasmado: “Nhô Bento levanta-se e limpa o pigarro – e eu suspiro por dentro, preparando-me para a seca. Esse tais recitativos de encomenda são em geral uma estopada que a gente tem que engolir de cara amável, com palminhas no fim e pedidos hipócritas de ‘Recite outra...’ Mas a minha surpresa foi grande. O homem pôs-se a dizer, com uma expressão, uma verdade e uma propriedade inexcedíveis, os melhores poemas caipiras que ainda ouvi – ricos de imagens novas, de modismos, de mil particularidades que no momento eu não podia analisar mas me enlevaram, como igualmente enlevaram a todos os presentes”, escrito – veja só – pelo próprio pai do “Jeca Tatu”, o senhor Monteiro Lobato. Ainda, antes de encerrar a análise do estilo de Nhô Bento, Lobato aproveita para dar mais uma alfinetada nos poemas dos “letrudos”, classificando-os como “intelectualismo versificado” vazio de poesia. Vale!

MIRANDA, Rafael Puertas de. Nhô Bento. Jornal Mogi News, Mogi das Cruzes, 11 de Dezembro de 2011 e republicado em 08 de Janeiro de 2012. Caderno Variedades, p. 03.

Nhô Bento no Youtube (Vídeos Sugeridos):

Loa a Júlio

“O ‘poético’ é exatamente a capacidade simbólica de uma forma.”
(Roland Barthes)

Neste sábado, a Secretaria de Cultura de Mogi das Cruzes promoveu a “Noite de Premiação” aos ganhadores dos Prêmios de Cultura e do Mapa Cultural. Na categoria Literatura - Poesia e Conto, vale destacar a homenagem ao finalista do Mapa Cultural Paulista - 2011/2012, o versátil escritor mogiano Julio Seidenthal, que divulga seus textos no “BLOG DO SEIDENTHAL” (blogspot - com mais de seis mil acessos), entre os quais selecionei o poema transcrito integralmente abaixo:

África

Morram, orixás europeus,
miscigenação não é missa,
de quadrados de retos,
que separam seus dialetos,
rinoceronte de gravata e girafa de tailleur?!

África, arranca-te as folhas de baobás,
e as sirva como chá para visitas,
quem bebe ajoelha e não se impõe,
descobrem em êxtase,
que o princípio é feminino e tem a sua cor,
e o verdadeiro miscigeno,
e o arco-íris que não "negra" que é negro,

África,
de ti nós fomos: brancos, amarelos e vermelhos,
e para ti,
nós seremos!
(in: <http://julioseidenthal.blogspot.com.br/>)

Adepto visível da experimentação formal e conhecedor dos mecanismos da boa poesia contemporânea (suas leituras o guiam!), Seidenthal presenteia-nos com um singular texto, exemplo louvável de sua vigorosa expressão poética, alheia a temas pudicos, rimas engessadas, ornamentos inúteis e que, no entanto, não dispensa um ritmo explosivo e marcante (o “estalo”).
Num primeiro momento, destaca-se a revolta sincera de um eu-lírico contra a “organização caótica” de um mundo que funciona de acordo com mecanismos de opressão mascarados por uma hipocrisia velada e ancestral.
Cabe a esta figura lírica, então, a pertinente tarefa de desnudar o poder sedutor e encantatório (a força natural e “feminina”) do espaço/alvo da opressão personificado: a mãe “África”. Para tanto, interpela-a, problematizando e redimensionando seu papel na história da cultura humana; o porvir (“para ti, nós seremos!”).
Enfim, uma verdadeira mostra de força da Literatura do Alto Tietê (inclusive, a praticada no “ambiente virtual”), embalada também pelo relevante trabalho de grupos como o “Entremeio Literário” e o “A.Cura”, bem distantes, pelo visto, da crítica rabugenta e ensimesmada dos arautos da “cultura literária adormecida”. Ou serei otimista demais? Vale!

MIRANDA, Rafael Puertas de. Loa a Júlio. Jornal Mogi News, Mogi das Cruzes, 04 de Dezembro de 2011. Caderno Variedades, p. 03.

A Sombra

Na história da Literatura, há personagens tão poderosos que, às vezes, acabam interagindo com a realidade (“Assim a lenda se escorre/a entrar na realidade,/e a fecundá-la decorre./Em baixo, a vida, metade/de nada, morre”, segundo Fernando Pessoa, que dava vida social a seus Heterônimos) ou ganhando dimensões infinitas, haja a vista a quantidade de outras obras que os retomam (empréstimo comum neste meio).
Talvez o maior exemplo destes processos seja Sherlock Holmes, incrível e fascinante detetive criado pelo escritor britânico “Sir” Arthur Ignatius Conan Doyle (1859-1930). A personagem, considerada uma das maiores “invenções” do universo da literatura policial, ganhou tamanha projeção que era praticamente impossível crer na sua não existência. Choviam cartas com casos rocambolescos a serem resolvidos e, segundo reza a lenda, o próprio autor “encarnava” o detetive para tentar elucidar os mistérios reais. Para quem se interessou pelo fato, fica a dica de leitura: “Athur & George” (2007), de Julian Barnes – espécie de romance histórico que narra as aventuras de Doyle.
Também o morador do 221B da Rua Baker parece fonte inesgotável de referências e “empréstimos” por parte de outros escritores espertalhões e oportunistas: uma personagem que, como uma sombra, tem freqüentado narrativas das mais diversas nacionalidades, sobrevivendo até a investida do tempo e da morte. Enfim, um prato cheio para aqueles escritores/leitores que admiram esta ficção de “carne e letra”. Mas, tudo tem o seu preço: essa “sombra” pesa. Difícil é o processo de desprendimento, de descolamento. “Brincar” com mestre da ciência da dedução tem o seu preço.
Assim aconteceu com o irrefreável, desavisado e criativo humorista brasileiro José Eugênio Soares (conhecido popularmente como Jô Soares) que, no seu recém-lançado romance “As Esganadas” (Companhia das Letras), novamente se vê às voltas com “O Xangô de Baker Street”, quando nos apresenta um detetive português (Tobias Esteves) que não passa de um decalque “fraco” da personagem de Doyle. Decepcionante.
O livro de Jô, alardeado em rede nacional e sucesso de vendas, é uma espécie de bem programada mercadoria de final de ano: papel ruim e preço acessível, mas, em linhas gerais, consolida-se também como uma sólida prova de que, cada vez mais, o autor se perde na construção de seus tipos cômicos e, sobretudo, ainda não se livrou de Holmes. Elementar.

MIRANDA, Rafael Puertas de. A Sombra. Jornal Mogi News, Mogi das Cruzes, 27 de Novembro de 2011. Caderno Variedades, p. 03.

Do Tato

Num dos interessantes capítulos da obra “Anatomy of Bibliomania” (1930), do jornalista inglês George Holbrook Jackson (1874-1948), encontramos uma incrível exposição a respeito do papel desempenhado pelos sentidos na prática da bibliofilia (grego: biblion - livro e philia – amor; em português, bem diferente da “bibliomania”, sendo esta última simplesmente a tara pela compra/posse de livros, sem, no entanto, lê-los).
A parte que mais me agrada do curioso texto citado, como bibliófilo teimoso e bibliomaníaco moderado, é aquela em que Holbrook discorre acerca da considerável relevância do “tato”, que sempre fora erroneamente entendido/apresentado como o mais ignóbil dos sentidos (segundo Aristóteles, que o desmerecia, era “comum a todos os animais, a exceção de alguns imperfeitos”).
Apoiando-se em declarações de bibliófilos renomados e em suas próprias experiências, anuncia as percepções tácteis, que não são restritas a regiões específicas do corpo, como uma inesgotável fonte de maneiras novas de prazer bibliófilo, pois nos ajudam a perceber várias qualidades de nossos adorados tomos: “a lombada polida de um belo volume antigo é uma tentação irresistível”. Há até quem tenha em público beijado os próprios livros despudoradamente. O toque, além de afinidade, é também criação.
Hoje, entendidos do assunto dividem o tato em outros quatro sentidos (ou sistemas). Considerando esta nova classificação e atentando para o mais especificamente envolvido na manipulação de um livro: o chamado sistema somatosensorial, responsável pela identificação de texturas, é muito difícil discordar das palavras antigas do entusiasmado Holbrook, como também é explicado o tipo de estratégia de quem cria tentadores aparelhos tecnológicos mirabolantes que, eventualmente, são apresentados como o “futuro do livro”. O falecido Steve Jobs, com certeza, utilizou-se deste conhecimento a fim de remodelar a forma de interação (interface) entre homem/aparelho. A revolução táctil dos “I”. Jobs eram dedos.
Mas não se engane, querido leitor. O livro (para além de mero objeto: o “âmbito”), mídia extremamente interativa, está longe de se tornar obsoleto. As tecnologias ainda não captaram a “presença” deste aglomerado de páginas que embalam as noites felizes de quem descobriu o sentido da leitura, as “cinco portas de amor ao livro”. Acontece que o livro tem alma, o livro respira, o livro espreita. Vale!

MIRANDA, Rafael Puertas de. Do Tato. Jornal Mogi News, Mogi das Cruzes, 20 de Novembro de 2011. Caderno Variedades, p. 03.

Dia "D"

Certa vez, querido leitor, quando ainda se arriscava nos terrenos da literatura, o senhor Diogo Mainardi, em sua providencialmente extinta coluna semanal publicada na revista Veja, declarara estar “enjoado” da obra do grande poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade.
O enojado articulista, movido por questões de natureza política e por mesquinhos interesses polemistas (diga-se de passagem, fatores que sempre lhe garantiram espaço naquela mídia e não simplesmente a inteligência), classificou o escritor mineiro como “piegas”, destacando o que para ele se apresentava como “sentimentalismo ginasiano”, “lirismo kitsch” e “uma ironia amável, cúmplice, que se esforça para confortar e apaziguar”.
O crítico improvisado, ainda, condenou o poeta da “pedra no meio do caminho” pelo seu breve flerte com o ideário de esquerda, sugerindo este evento biográfico como um mero “modismo” e o denuncia como portador de uma “falsa modéstia” meticulosamente planejada (não sabe do horror do poeta ao tomar conhecimento do expurgo stalinista).
Enquanto ruminava os próprios dentes, vociferando tolices contra a obra (poesia e prosa) do ilustre itabirano, o mequetrefe Mainardi, para justificar seu bom gosto literário e arquitetar seus corriqueiros, desgastados e previsíveis contragolpes lógicos, elegia o poeta recifense João Cabral de Melo Neto como uma espécie de “antídoto” certo para atenuar os efeitos colaterais da poesia de Drummond.
Covarde Mainardi! Fosse Drummond vivo, sapatearia na cabeça do sujeito. Até João Cabral, dono de um estilo poético marcadamente influenciado, no início, pelo fazer poético do criticado, talvez se rebelasse, se na época ainda estivesse entre nós.
A verdadeira força da obra drummondiana é o seu caráter multifacetado, uma verdadeira “biografia poética/intelectual” de uma das maiores sensibilidades do século XX, e que, ainda hoje, embala o sério trabalho crítico que privilegia um processo analítico de estudo “parcial” capaz de esmiuçar suas distintas “faces”. Caráter amplo demais para ser valorado por quem erroneamente toma partes pelo todo.
***
Esta semana, em virtude da comemoração simbólica do 109º aniversário de Carlos Drummond de Andrade, o Instituto Moreira Salles, entidade responsável pela manutenção do acervo do poeta e grande divulgadora da literatura, lançou o projeto que inaugura no calendário cultural brasileiro o “Dia D - Dia Drummond”. Vale!

MIRANDA, Rafael Puertas de. Dia "D". Jornal Mogi News, Mogi das Cruzes, 06 de Novembro de 2011. Caderno Variedades, p. 03.

A defesa da Estética

Certa vez, um pianista decidiu visitar a exposição de uma tradicional empresa fabricante de pianos a fim de adquirir um novo instrumento para ser utilizado no seu próximo espetáculo. Chegando à loja, declarou suas intenções e começou a ser apresentado a cada uma das peças à disposição.
Como executaria músicas de um compositor célebre (um clássico), decidira experimentar piano por piano até que achasse o instrumento que lhe propiciasse a sonoridade e harmonia adequadas, capazes de satisfazer plenamente as expectativas de sua seleta platéia, formada por especialistas, músicos e amantes do determinado compositor, ou seja, sujeitos dotados de específicas competências receptivas, desenvolvidas graças ao contato frequente com outras obras previstas numa espécie de “cânone musical” (a educação da sensibilidade).
O músico analisou cada um dos pianos e não ficou satisfeito. Nenhum deles teria as características acústicas necessárias para reproduzir as nuances das músicas que executaria; de forma alguma contemplaria plenamente as características estéticas intrínsecas da obra.
Já se despedia do vendedor, quando, inesperadamente, um piano chega na sala. Segundo os carregadores, a peça fora devolvida pelo comprador original. O músico decidiu experimentá-la. Ficou pasmo quando notou que aquele piano era, sem sombras de dúvidas, o instrumento adequado ao seu intento; aquele que procurava. Um “encontro” inesperado.
Esta narrativa medíocre, querido leitor, pode gerar diversas reflexões importantes acerca da arte musical. Questionamentos que nos ajudam a compreender a natureza da Arte. Transpondo-os para o plano da Literatura, podemos destacar o fato de que a obra literária, como a obra de um compositor famoso, é sempre um artefato, um objeto que se separa de seu criador, possuindo, assim, uma materialidade sem a qual não seria possível a obtenção de um juízo estético.
Esta constatação, obviamente, destaca as características internas da obra literária e deve ser compreendida como um dos pressupostos fundamentais do ensino da Literatura que deve, sobretudo, alimentar a “competência receptiva” (ou espécie de cogniscência) dos leitores em formação para que os mesmos sejam capazes de perceber que o código da língua portuguesa interage com outros códigos (métricos, estilísticos, retóricos, estéticos, ideológicos) na estruturação do texto literário. Vale!

MIRANDA, Rafael Puertas de. A defesa da Estética. Jornal Mogi News, Mogi das Cruzes, 30 de Outubro de 2011 e republicado em 22 de Julho de 2012 . Caderno Variedades, p. 03.