quarta-feira, 20 de junho de 2012

Viva?

A primeira cena se descortina, desafiando a imaginação da plateia. Nela, desfilam duas figuras curiosas, para não dizer “quixotescas”: um gorducho, com ares soberbos e roupa estranha, seguido de um lacaio magricela carregando pesada bagagem sobre o lombo de um asno cansado. A fórmula simples é rapidamente desvendada pelo espectador atento: trata-se do patrão e do escravo, mas ainda certa estranheza paira no ar. São, respectivamente, Dioniso - o próprio deus do teatro, fantasiado de Herácles - e seu servo Xântias, a reboque.
Começa o diálogo e, aos poucos, o público vai se familiarizando com a empreita da exótica dupla: Dioniso, após a morte de Eurípedes (último grande poeta de Atenas), repudiando o talento medíocre dos artistas ainda vivos, seus egos inflados e suas composições decadentes, decide “descer” ao Hades a fim de ressuscitar o autor de Medeia. Quando lá chega, acaba desprezando este e resgata outro da morada dos mortos, que julgava mais competente e menos polêmico: Ésquilo.
Estes são os argumentos da deliciosa e premiada comédia “As Rãs” (gr. Βάτραχοι), do dramaturgo ateniense Aristófanes (V a.C.). Espécie de paródia e crítica do próprio ambiente literário, foi representada pela primeira vez em 405 antes de Cristo. Naquele tempo, querido leitor, notamos já a prática ainda hoje comumente difundida de sentenciar a “morte da poesia”.
Contrariando esta sentença, mesmo que, para isso, sujeitemo-nos a exalar “eau de decreto”; na semana passada, comemoramos o “Dia Nacional da Poesia” (14 de Março), providencialmente alocado na data de nascimento de Antônio Frederico de Castro Alves, aquele que - sob pena de desentocar quilos de pó e teias de aranha -, saído de Curralinho (hoje, Município de Castro Alves - BA, ainda bem!) é, sem sombra de dúvidas, um dos maiores poetas brasileiros do século XIX.
As comemorações foram limitadas, tímidas, invisíveis. Não houve bolo, passeata, rua pintada, desfile, trânsito parado, traje colorido, banda, banner, bandanas, duplas sertanejas, tiros de canhão, barraca, comoção ou sarau.
A poesia não morreu, mas se arrasta. Principalmente, porque leitores sensíveis são os responsáveis pela sua total nutrição. Onde estarão em tempos tão embrutecidos? Onde andam lendo ainda Poesia?
O saudoso poeta Paulo Leminski a dizia um “inutensílio indispensável”.
Há quatro dias, acendi uma vela: porque também ela, uma religião.
Vale!

MIRANDA, Rafael Puertas de. Viva?. Jornal Mogi News, Mogi das Cruzes, 18 de Março de 2012. Caderno Variedades, p. 07.

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