terça-feira, 6 de julho de 2010

Levantado do chão

Cada um cumpre o que lhe cabe. Um grande artista sonha, a obra nasce.
Lembro-me ainda de quando, às portas da faculdade, um Mestre depositou nas minhas mãos uma edição amarelada do “Ano da Morte de Ricardo Reis”, alertando-me de pronto da “engenhosidade e força verbal” do autor que, segundo ele, era a mais expressiva voz da Literatura Portuguesa contemporânea, um autor chamado José Saramago. No mês passado, por intermédio da boca de um aluno meu, soube da morte do escritor lusófono ganhador do prêmio Nobel de Literatura. O jovem discente, decerto, esperava uma lágrima; disse-lhe, no entanto, que não há o que temer: Saramago fica.
Nos dias que se seguiram, muito se disse da vida do autor de “Caim”. Não abundam, entretanto, palavras certas sobre sua obra: pasmo, assisti a um bem penteado âncora de telejornal afirmar que “Saramago não se destacou pelos temas abordados, mas sim e somente pela linguagem empregada” (?). Será incompreensível um autor tão estimado pelo leitor brasileiro?
Saramago lapidou um universo literário onde o homem, vitimado por uma lógica dupla, deve questionar e aprender com o passado. Também lá orbitam interiores desvelados e o fantástico, alinhado, deixa ranhuras na vítrea carapaça do real. Todo o banquete de tensões que assombram o homem de hoje e de ontem nos é servido torrencialmente com uma escrita que, antes de só “teimar” a fala por irreverência ou desfastio, subvertendo normas e sonegando sinais gráficos, brinda-nos com ritmo marcadamente solto, de conversa fiada com esmero.
O narrador é sempre parte da matéria narrada (fusão). Com ele, geralmente, experimentamos e vivenciamos situações capazes de precipitar luz para os recônditos da alma. E porque tão crítica e sensata, sua narrativa arrebata o leitor brasileiro; encantamento raro. Talvez, porque nos leve a questionar a dinâmica da sociedade pós-moderna, mãe do náufrago em jangada de pedra à espera de identidade; talvez, porque saibamos intimamente que ele nos inaugura também como personagens seus; conduzindo-nos, criaturas rasas que somos (ou nos tornamos), pelos caminhos tortuosos do espetáculo absurdo que nos oprime.
Logo, Saramago fica. Ele, como ninguém, soube matar a intermitente morte.

P.S.: Em novembro do ano passado, enviei-lhe uma carta. Não espero resposta, pois já a encontro nas prateleiras de minha estante.

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Do título

"Na realidade, todo leitor é, quando lê, o leitor de si mesmo. A obra não passa de uma espécie de instrumento óptico oferecido ao leitor a fim de lhe ser possível discernir o que, sem ela, não teria visto certamente em si mesmo".
 
Valentin Louis Georges Eugène Marcel Proust (1871-1922), in "O tempo redescoberto".