segunda-feira, 1 de abril de 2013

Tapioca recheada com vento doce

Macunaíma saiu bem rindo do ciclope Polifemo: “Eu sou ninguenzada, paixão! Taca a pedra, vai!” (e Netuno não gostou nada da má-criação). Bovary, entre dentes, torceu o vestido empenhado em leilão, enquanto Capitolina, de bolsos cheios, cuspia moscas e maldizia a solidão. Uma baleia branca exibia arpões de aço presos no couro: piercings inofensivos da ira de alguém, alucinação (“para mim, basta que sejam humanos, porque coisa pior não há” - repetia em marcha ré); e também um velho pescador Santiago (talvez até mais velho que a própria velhice) escamava peixes com as próprias mãos. Maria Sara, com uma vareta, repartia lerdamente o próprio chão; ao mesmo tempo em que Diadorim, vestida de macho e mascando o capeta, rasgava as entranhas do Sertão. Do alto da Arcádia, um tal de Dirceu estrangulava Cupido num mata-leão. Fernando Pessoa cansava o silêncio, enquanto heterônimos enjoados jogavam gamão. Do boca do inferno, saía a sanha fingindo canção. Um parvo engraçado é capaz até de ofender o Cão. Enquanto interpelava o gigante capado, o Vasco da Gama largava o timão. Tampouco o pequeno Buendía, com rabo de porco, desconfia da própria maldição. Num beco escuro, contrariando o Círculo, Jaguar inspira lamentação, vitimado pelo aburguesamento cinzento que, de socapa, já levara Leonardinho a uma promoção (“Vi o Vidigal, fiquei sem sangue, se não for ligeiro, o quati me lambe!”).  A cama espaçosa devora os Bloom e Stephen sem distinção. Na rua, sobrevoando lamparinas, o senhor Sansa regurgita inseticidas inócuos pelos vãos. Sancho desconfia um pouco da lucidez de seu próprio patrão. A natureza mia, enquanto Crusoé afia o bambu e come mamão. Chegando ao cais de sua terra natal, Gulliver, porque se achava ainda maior que seus conterrâneos, quase foi atropelado por um cavalo alazão. Gandalf fumava cachimbo e o Sr. Holmes suspirava ópio na contramão. Beatriz era mocreia, mas esperava, triunfante, no assento etéreo e perfumado a própria alusão. Na falta de tinta, Mefistófeles reclama o sangue da transação. D’Artagnan tomava cerveja num copo sujo, em contrição. Com tempo de sobra e um biscoito na boca é possível relembrar o cheiro de gente esnobe e problemática - Proust(ituição); por pouco, Castorp aprende a tossir como gente que morre de mal de pulmão. Mersault cuspia na mãe e o pequeno Oskar era só uma cabeça e pouca ambição. Almafitano misterioso olhava desconfiado para esta insolação. "Ai" que saudade eu tenho dum sabiá 18 quilates numa palmeira (como se um sabiá empoleirasse costumeiramente numa palmeira longínqua), ou na flor do maracujá, ou na aurora de alguma vida, ou no lombo da última quimera enterrada às pressas, ou na orelha de quem fala com estrelas, ou na boca porca da Macabéa. NOIGRANDESNUDOGALÁXIASTÃO. Um bonde para Pasárgada não ultrapassaria, em velocidade, um corvo bem treinado, teimando avião. Gatos pretos, dizem os doidos, dão azar e são delatores (ou não?). Drummond, indiferente a máquina do mundo, apagou a luz da repartição.

MIRANDA, Rafael Puertas de. MaçarocaJornal Mogi News, Mogi das Cruzes, 24 de Março de 2013. Caderno Variedades, p. 07.

Da inocência

No posfácio da polêmica e complexa obra Lolita (1955), intitulado “Sobre um livro chamado Lolita”, o escritor e crítico literário russo Vladimir Nabokov (1899-1977) põe o leitor a par das agruras vivenciadas por ele, enquanto ainda procurava uma editora que se interessasse pela publicação daquele que viria a se tornar um dos romances mais constrangedores e bem construídos de todos os tempos.
Naquela época, década de cinquenta, a publicação de um livro que apresentasse um pedófilo (ou “ninfolepto”, como a personagem justifica eufemisticamente a sua própria obsessão – termo forjado pelo próprio Nabokov) concretizando suas vontades e ainda dotado de um discurso insinuante capaz de desnudar a hipocrisia moral, relativizando os bons costumes norte-americanos, era praticamente inviável (a narrativa só fora publicada na América em 1958). Ainda hoje, Lolita desperta amores e ódios, perplexidade e repulsa, por vezes, de forma concomitante. Não há como sair ileso.
No Brasil, a obra ganhou uma celebrada tradução em língua portuguesa, levada a cabo pelo literato Jorio Dauster, que, respeitando os procedimentos estilísticos do escritor russo (“Lolita, luz da minha vida, labareda em minha carne. Minha alma, minha lama”), presenteou-nos com a musicalidade e poesia de suas construções.
Acompanhamos espantados, quando mergulhamos na obra, as lembranças angustiantes do professor Humbert Humbert que, ao alugar um quarto numa destas típicas cidades ermas e esquecidas do interior dos Estados Unidos, conhece a filha da senhoria, uma menina de doze anos chamada Dolores, cujo apelido é Lolita. Enquanto convive com a garota, o narrador em primeira pessoa (não confiável, diga-se de passagem) e protagonista enxerga, em cada movimento da garota, uma insinuação. Em determinada altura da narrativa, o destino possibilita que Humbert se “aproprie” da criança. Mas é também o fado que a arrancará das mãos de seu violentador. Não há final feliz.
Há poucos dias, o colunista João Pereira Coutinho, da Folha, anunciou em um artigo o que para ele seria uma “recente polêmica” acerca da obra, mas que, na verdade, circula pelo meio literário há algum tempo: a localização de um conto, publicado em 1916 pelo desconhecido escritor alemão Heinz von Lichberg que, além de possuir um enredo semelhante (a jovem desta narrativa, no entanto, é decidida, “amaldiçoada” e espanhola), também se intitula “Lolita”. No mesmo texto, Coutinho apresenta a tese do neurocientista Oliver Sacks para o caso: na verdade, Nabokov foi alvo de um fenômeno cerebral denominado "criptomnésia". Neste processo, a própria mente esquece as fontes e constrói sua própria “originalidade” sobre elas.
Desconcertante. Esquecem-se ambos de que a Literatura é espaço comum para estes fenômenos intertextuais e de que um intelectual da envergadura de Nabokov, afeito à análise literária, jamais se esqueceria de uma referência tão evidente (nem se estivesse alocada na “outra margem da memória”). Pensar o contrário é muita inocência. O escritor russo, como costumamos sentenciar nas plagas tupiniquins, “deu um gato”, apropriou-se da estória alheia, e pronto.

MIRANDA, Rafael Puertas de. Da inocênciaJornal Mogi News, Mogi das Cruzes, 17 de Março de 2013. Caderno Variedades, p. 07.