sexta-feira, 18 de setembro de 2020

Conto "A Aranha", de Rafael Puertas de Miranda.

A Aranha

    Eu não acredito em assombração ou em forças sobrenaturais, mas ainda não me recuperei completamente daquele acontecimento atordoante.
   Era um feriado prolongado e as atividades na Universidade estavam suspensas. Meu colega de quarto, Rogério, convidou-me para passar estes dias mortos na casa de sua Tia Alberta, que vivia em Ubatuba.
    A viagem foi agradável e sem imprevistos. Chegamos à residência de Alberta no final da tarde. Era uma casa assobradada, espaçosa e arejada. As enormes paredes da sala eram adornadas com máscaras tribais, talvez de origem havaiana, que combinavam com a atmosfera do lugar.
   Uma enfermeira cuidava da parenta de Rogério que, por conta de algum acontecimento traumatizante desconhecido da família, passava os dias em silêncio, sentada numa cadeira de balanço, penteando seus longos cabelos negros como a noite. Chegaram a cogitar um grave quadro depressivo.
    Senti certa tristeza, pois esperava uma recepção mais calorosa. A senhora idosa, com seus olhos estáticos, enchia-me de aflição. Sentada no sofá, acompanhava seus movimentos metódicos. Às vezes, esperava que ela se mexesse e se levantasse, rompendo subitamente com aquele estado de transe que teimava abismo.
    — Mas esse cachorro não para de latir nunca? – disse Rogério, incomodado com o cão do vizinho, enquanto levava nossas malas para os quartos, no andar de cima.
    O animal, desde a nossa chegada, manifestava uma irritação anormal.
    — Acho que esse cachorro é louco! Mudou há pouco para cá. Átila é o nome dele. Passa o dia inteiro latindo. – explicou a enfermeira, já acostumada com os desvarios do cão.
    Lembro-me bem de que, quando me deitei para dormir, na cama do quarto de hóspedes, ainda ouvia os latidos do nosso vizinho inconveniente. Levou tempo para que eu pegasse no sono.
    De madrugada, aconteceu o incidente. Meio enjoada, despertei com uma sede terrível. Percebi, antes de sair do quarto em busca de um copo com água, que havia algo de diferente.
    Demorei para me dar conta de que o cão amalucado estava em silêncio profundo. Decerto, esgotou-se e agora, inerte como uma pedra, dormia em algum canto do jardim; pensei comigo.
    Desci as escadas, preocupada em não fazer barulho. Não queria acordar ninguém. Já estava saltando o último degrau, quando notei, de soslaio, um movimento estranho, num dos cantos da sala.
    Virei-me rapidamente e vi uma cena inexplicavelmente bizarra. Alberta estava de pé próxima à parede e seus cabelos, como se fossem dotados de vontade própria, erguiam-na do chão, escalando as reentrâncias do reboco rústico, pouco a pouco.
    Os fios, como uma enorme e felpuda aranha negra, pareciam ter vida própria e se expandiam em silêncio, embora pulsassem como se fossem embalados por uma energia sinistra e invisível, irradiada sabe-se lá de onde.
    Lembro-me nitidamente do terror que me congelava as pernas, subindo pelo meu corpo como os cabelos escuros subiam pela parede. Nenhum som conseguia brotar da secura da minha boca.
    Então, a minha visão foi escurecendo e, quando recobrei a consciência, era de manhã e estava esparramada no tapete da sala vazia. Arrastei-me até o quarto para dormir mais algumas horas e quando acordei novamente, Rogério me chamava para o café. 
   Tudo voltara ao normal. Alberta repousava em silêncio na cadeira de balanço, o Sol invadia a casa pela vidraça, o cachorro latia obstinadamente e o meu amigo de faculdade se preparava para um dia inteiro na praia.
   Demorou um pouco, mas criei coragem e contei a história toda para Rogério. Ele desconversou e me disse que certamente eu teria sonhado com tudo aquilo. 
    — Acho que você é sonâmbula! – disse rindo e, em seguida, percebendo a minha preocupação, mudou rapidamente de assunto.
    Naquela tarde, arrumei as minhas malas e voltei para a Capital, abandonando de vez todo aquele mistério, meu amigo, o Sol, a praia e o barulho infernal daquela fera insistente que rasgava o silêncio do dia.

© Rafael Puertas de Miranda - 2020