segunda-feira, 10 de junho de 2013

O bicho azul do Sr. Zuck

“(...)Este, que aqui aportou,
Foi por não ser existindo.
Sem existir nos bastou."
(Fernando Pessoa )
Indubitavelmente duvidoso,
o bicho azul, sem norte, nem s(o)ul,
anda solto,
alheio a segredo e o que
quer que o valha em resoluta
aspiração de ser como si.
 
O bicho azul não é livro, não é livre.
 
Mesmo social de intensas bocas secas,
o bicho azul não tem rabo, ou pele,
e dispensa apresentação,
dispensa o sussurro ao pé do ouvido,
dispensa um abraço.
Fingindo rede, o bicho azul afugenta repouso.
Vício nosso rosto,
algoritmo insosso.
 
O bicho azul me leva em coleira,
o bicho azul me bota coragem,
o bicho azul me azucrina,
o bicho azul, contrariando a inabalável incognoscibilidade
dos códigos sinistros,
ruge,
late,
pia;
o bicho azul mente bem coisas lindas para me ninar
e eu acredito,
e a minha tristeza não passa
e o céu permanece cinza.
 
Tudo parece herdar um pouco da cor do bicho azul.
Nele, as pessoas são famosas,
bombas pulverizam criancinhas indefesas,
cabeças arejadas distribuem flores,
conservadores conservam suas conservas,
fetos mortos repousam em caixas de sapato,
cartazes embotam de sangue,
gases lacrimejam a paulista,
poetas distraem as horas,
balas encontram corpos santificados
e
odiosos, das mais diversas espécies e siglas,
desfilam em carros alegóricos dourados.
 
E assim,
teimando aumentado fim,
o bicho azul do Sr. Zuck, quem diria,
rosnando nossa contradição,
exibe seus dentes afiados,
no olho do furacão.

MIRANDA, Rafael Puertas de. O bicho azul do Sr. ZuckJornal Mogi News, Mogi das Cruzes, 26 de Maio de 2013. Caderno Variedades, p. 07.

segunda-feira, 3 de junho de 2013

Archimboldianas I

 
No ápice da convalescença do que viria a se consolidar como um quadro fatal de falência hepática, o escritor chileno Roberto Bolaño (1953-2003) instruiu seus familiares e editores a respeito da dinâmica a ser adotada na publicação de sua última obra, uma caudalosa narrativa intitulada ”2666”.
O romance, segundo Bolaño, deveria ser publicado em cinco partes, respeitando o intervalo de um ano para cada volume. No entanto, após a morte prematura do escritor, o amigo e estudioso que nomeara como responsável por assuntos pertinentes ao seu fazer literário, Ignacio Echevarría, depois de analisar o material de trabalho e o resultado final, sugere que o romance seja publicado em volume único, a fim de garantir a integridade de seu valor literário.
E, assim, no ano de 2004, é publicada postumamente aquela que viria a se consolidar como a obra máxima de um escritor facilmente elencado como um dos grandes prosadores da literatura contemporânea. No Brasil, o romance “2666” é publicado tardiamente em 2010 (tradução de Eduardo Brandão que integra o catálogo da editora Companhia das Letras).
Com seu estilo agressivo, despojado e febril, a narrativa apresenta uma sucessão intensa e movediça de episódios interligados pela figura fictícia de um enigmático, talentoso e recolhido escritor alemão: Benno von Archimboldi.
A primeira parte da trama, que narra as peripécias de quatro estudiosos europeus interessados pela obra e incompleta biografia do misterioso escritor alemão é admiravelmente “degustada” pelo leitor iniciado nas práticas dos estudos e investigações literárias. Na segunda, somos levados às profundezas da personagem Óscar Amalfitano, um professor universitário na fictícia cidade mexicana de Santa Tereza, município fronteiriço aparentemente pacato que vem sendo assolado por uma centena de assassinatos brutais não solucionados de mulheres jovens. Estes crimes são apresentados e esmiuçados na terceira e quarta parte da obra por intermédio de óticas distintas (jornalistas estrangeiros, policiais, etc). E, por fim, a parte que “resolve” a figura espectral Archimboldi.
Não espere, querido leitor, encontrar na obra a satisfação ordinária resultante de um romance quadrado de mistério e suspense. Esta trama alcança outras esferas e é de se esperar que não se conclua plenamente sem reverberar na obra completa de um escritor consciente do fazer literário (acredite: as demais obras de Bolaño nos oferecem, mencionando diretamente ou não a figura de Archimboldi - num teimoso e obscuro diálogo entre si - um verdadeiro emaranhado de pistas aparentemente interligadas). Vale!
MIRANDA, Rafael Puertas de. Archimboldianas I. Jornal Mogi News, Mogi das Cruzes, 14 de Abril de 2013. Caderno Variedades, p. 07.