"Felicidade? Palavra doida inventada por
nordestinas que andam aos montes por aí (...)"
A hora da estrela (1977), de Clarice Lispector
O terrível
evento se deu, querido leitor, enquanto aguardava atendimento médico para uma
destas consultas rotineiras. Enfastiado com as pinturas que ornavam as paredes
do pomposo consultório – começo a acreditar que haja uma disciplina específica
de “mau gosto artístico” na grade dos cursos de medicina, dada a quantidade de
obras ridículas que enfei(t)am tais ambientes – , decidi folhear distraidamente
uma revista de futilidades, daquelas que abarrotam as mesas de salas de espera
e são bem propícias a tais infortúnios. Diga-se de passagem, também são
conscientemente programadas para durar mais: o famoso recheio “alheio”.
Para minha
surpresa, no entanto, entre fotos de batons e modelos insossas, encontrei uma
matéria celebrando a grande escritora ucraniana, naturalizada brasileira,
Clarice Lispector (nascida Haia Pinkhasovna Lispector; 1920-1977). Os
depoimentos, dados bibliográficos e a análise das características marcantes do
estilo da prosadora foram muito bem “pescados”. Uma bela fotografia emoldurava
uma das páginas da seção. Tudo organizado.
Mas, para minha
total angústia e desespero, ao lado da referida foto, jazia a reprodução
integral de um medonho (para não dizer “escroto”) poemeto de auto-ajuda,
atribuído a autora de “Perto do Coração Selvagem”.
O arremedo,
intitulado “Há momentos”, circula
pela internet deliberadamente, constando em sites, aparentemente, confiáveis,
daqueles que seduzem apressados organizadores de conteúdo que não se dão ao
luxo de desmascarar a “autoria desconhecida” destes escritos mal acabados.
Com Clarice, é
fácil.
Primeiro, nunca
publicou poemas, somente Romances, Contos e Crônicas. É conhecida pela
densidade de suas personagens e tramas psicológicas truncadas.
Segundo,
observando sua natureza solitária, introvertida e melancólica (para não dizer
depressiva), nunca diria coisas do gênero: “sonhe com o que você quiser”, “a
importância das pessoas que passam por sua vida”, “sorria, seja feliz”, “mude”,
“tenha felicidade bastante para fazê-la doce”. Se fosse viva, a autora do belo
e cruel romance “A hora da estrela”, teria ânsias. Este critério também pode
ser empregado com Fernando Pessoa.
Enfim, a
Internet é um espaço livre e sempre será. Mesmo assim, é importante “filtrá-la”.
Vale!
MIRANDA, Rafael Puertas de. Momentos. Jornal Mogi News, Mogi das Cruzes, 29 de Abril de 2012.
Caderno Variedades, p. 07.
Nenhum comentário:
Postar um comentário