segunda-feira, 25 de junho de 2012

Momentos

"Felicidade? Palavra doida inventada por nordestinas que andam aos montes por aí (...)"
A hora da estrela (1977), de Clarice Lispector

O terrível evento se deu, querido leitor, enquanto aguardava atendimento médico para uma destas consultas rotineiras. Enfastiado com as pinturas que ornavam as paredes do pomposo consultório – começo a acreditar que haja uma disciplina específica de “mau gosto artístico” na grade dos cursos de medicina, dada a quantidade de obras ridículas que enfei(t)am tais ambientes – , decidi folhear distraidamente uma revista de futilidades, daquelas que abarrotam as mesas de salas de espera e são bem propícias a tais infortúnios. Diga-se de passagem, também são conscientemente programadas para durar mais: o famoso recheio “alheio”.
Para minha surpresa, no entanto, entre fotos de batons e modelos insossas, encontrei uma matéria celebrando a grande escritora ucraniana, naturalizada brasileira, Clarice Lispector (nascida Haia Pinkhasovna Lispector; 1920-1977). Os depoimentos, dados bibliográficos e a análise das características marcantes do estilo da prosadora foram muito bem “pescados”. Uma bela fotografia emoldurava uma das páginas da seção. Tudo organizado.
Mas, para minha total angústia e desespero, ao lado da referida foto, jazia a reprodução integral de um medonho (para não dizer “escroto”) poemeto de auto-ajuda, atribuído a autora de “Perto do Coração Selvagem”.
O arremedo, intitulado “Há momentos”, circula pela internet deliberadamente, constando em sites, aparentemente, confiáveis, daqueles que seduzem apressados organizadores de conteúdo que não se dão ao luxo de desmascarar a “autoria desconhecida” destes escritos mal acabados.        
Com Clarice, é fácil.
Primeiro, nunca publicou poemas, somente Romances, Contos e Crônicas. É conhecida pela densidade de suas personagens e tramas psicológicas truncadas.
Segundo, observando sua natureza solitária, introvertida e melancólica (para não dizer depressiva), nunca diria coisas do gênero: “sonhe com o que você quiser”, “a importância das pessoas que passam por sua vida”, “sorria, seja feliz”, “mude”, “tenha felicidade bastante para fazê-la doce”. Se fosse viva, a autora do belo e cruel romance “A hora da estrela”, teria ânsias. Este critério também pode ser empregado com Fernando Pessoa.
Enfim, a Internet é um espaço livre e sempre será. Mesmo assim, é importante “filtrá-la”. Vale!

MIRANDA, Rafael Puertas de. Momentos. Jornal Mogi News, Mogi das Cruzes, 29 de Abril de 2012. Caderno Variedades, p. 07.

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