quarta-feira, 20 de junho de 2012

Da coincidência

Em 1948, o saudoso escritor maranhense Josué Montello (1917-2006) lançava sua primeira obra em prosa: “A luz da estrela morta”. Neste surpreendente e perturbador romance filosófico, bem diferente dos modelos sistematizados e desgastados próprios dos modernos romancistas nordestinos, o personagem narrador Eduardo, um dramaturgo que passa por uma espécie de bloqueio criativo, revela-nos suas mais íntimas angústias diante da inexorável passagem do tempo – como bocejaria Machado de Assis: “Matamos o tempo; o tempo nos enterra”. Esta tempestade interior é amplificada por um corriqueiro acidente: o antigo relógio carrilhão, que herdara do avô, parara de funcionar subitamente.
Com uma intensidade hipnótica, a narrativa nos conduz aos abismos mais profundos da experiência humana. O jovem solitário Eduardo, que perdera os pais quando criança e que fora criado pelo avô já falecido (espécie de espectro no romance), reconstitui, de maneira desconexa e febril, o próprio passado em busca de respostas para a obsessão doentia que lhe fragiliza os nervos: acredita que a última marcação estática dos ponteiros do relógio seja uma espécie de agourento presságio do exato instante de sua horrenda e violenta morte, fantasiada por seus desvairios “herdados”.
A obra, à margem de qualquer manual, mostra toda a força deste escritor brasileiro que, diferente de muitos “mágicos”, mereceu sua imortalização na, hoje chinfrim, Academia Brasileira de Letras.
Uma curiosidade pitoresca, no entanto, rodeia esta deliciosa obra. Em 1956, enquanto passeava por uma livraria no Peru, Montello viria a vivenciar o que chamara de “a mais aflitiva de todas as emoções vividas como escritor”.
Acontece que, perambulando entre as prateleiras, encontrou o romance “O Relógio”, do escritor italiano Carlo Levi (1902-1975). Interessado pela coincidência, decidiu folhear as páginas da edição espanhola e, para seu espanto, o livro continha exatamente o mesmo tema, compartilhava a mesma técnica; em suma: uma espécie de decalque de sua obra aqui mencionada.
O escritor brasileiro, que num primeiro momento, esforçou-se para lembrar se havia lido a obra italiana, respirou aliviado quando descobriu que o seu livro fora publicado dois anos antes: O relógio era de 1950. Ainda, deu um jeito de publicar um artigo na Itália, intitulado: “Dois relógios entre a coincidência e o plágio”.
Resta saber se o judeu italiano “garfou” a história do brazuca ou é apenas uma grande coincidência. De qualquer forma, vale!

MIRANDA, Rafael Puertas de. Da coincidência. Jornal Mogi News, Mogi das Cruzes, 18 de Dezembro de 2011. Caderno Variedades, p. 03.

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