quarta-feira, 6 de junho de 2012

A Sombra

Na história da Literatura, há personagens tão poderosos que, às vezes, acabam interagindo com a realidade (“Assim a lenda se escorre/a entrar na realidade,/e a fecundá-la decorre./Em baixo, a vida, metade/de nada, morre”, segundo Fernando Pessoa, que dava vida social a seus Heterônimos) ou ganhando dimensões infinitas, haja a vista a quantidade de outras obras que os retomam (empréstimo comum neste meio).
Talvez o maior exemplo destes processos seja Sherlock Holmes, incrível e fascinante detetive criado pelo escritor britânico “Sir” Arthur Ignatius Conan Doyle (1859-1930). A personagem, considerada uma das maiores “invenções” do universo da literatura policial, ganhou tamanha projeção que era praticamente impossível crer na sua não existência. Choviam cartas com casos rocambolescos a serem resolvidos e, segundo reza a lenda, o próprio autor “encarnava” o detetive para tentar elucidar os mistérios reais. Para quem se interessou pelo fato, fica a dica de leitura: “Athur & George” (2007), de Julian Barnes – espécie de romance histórico que narra as aventuras de Doyle.
Também o morador do 221B da Rua Baker parece fonte inesgotável de referências e “empréstimos” por parte de outros escritores espertalhões e oportunistas: uma personagem que, como uma sombra, tem freqüentado narrativas das mais diversas nacionalidades, sobrevivendo até a investida do tempo e da morte. Enfim, um prato cheio para aqueles escritores/leitores que admiram esta ficção de “carne e letra”. Mas, tudo tem o seu preço: essa “sombra” pesa. Difícil é o processo de desprendimento, de descolamento. “Brincar” com mestre da ciência da dedução tem o seu preço.
Assim aconteceu com o irrefreável, desavisado e criativo humorista brasileiro José Eugênio Soares (conhecido popularmente como Jô Soares) que, no seu recém-lançado romance “As Esganadas” (Companhia das Letras), novamente se vê às voltas com “O Xangô de Baker Street”, quando nos apresenta um detetive português (Tobias Esteves) que não passa de um decalque “fraco” da personagem de Doyle. Decepcionante.
O livro de Jô, alardeado em rede nacional e sucesso de vendas, é uma espécie de bem programada mercadoria de final de ano: papel ruim e preço acessível, mas, em linhas gerais, consolida-se também como uma sólida prova de que, cada vez mais, o autor se perde na construção de seus tipos cômicos e, sobretudo, ainda não se livrou de Holmes. Elementar.

MIRANDA, Rafael Puertas de. A Sombra. Jornal Mogi News, Mogi das Cruzes, 27 de Novembro de 2011. Caderno Variedades, p. 03.

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