segunda-feira, 21 de março de 2016

Capitu, adorável traidora.

 
    Desde que a crítica estadunidense Helen Caldwell publicou, na década de 1960, o inusitado livro: “O Otelo brasileiro de Machado de Assis”, uma verdadeira onda de acólitos, estrangeiros e nacionais, abraçou, nos anos que se seguiram, a causa da plena absolvição da personagem Capitolina, acusada de adultério descarado pelo próprio marido, Bento Santiago, no romance “Dom Casmurro (1899)”, de Machado de Assis. 
    Segundo Helen, o brasileiro comum, vítima de uma mentalidade contaminada por uma estrutura tipicamente patriarcal, machista, tende a enxergar a promiscuidade onde não há e o problemático e obsessivo narrador personagem do romance não merece a mínima confiança. Consolidou-se, desta maneira, a hipótese rala de que não houve traição, para desespero de muitos dos guardiões de nossas letras.
    Em verdade, desde as primeiras páginas de Dom Casmurro, somos apresentados a um Romance “Omisso"; repleto de lacunas a serem preenchidas segundo as orientações de um homem traído. Vários críticos contemporâneos de Machado, entre eles Arthur de Azevedo, repercutiram o lançamento da referida obra, destacando-a como uma empolgante história de traição e o Bruxo do Cosme Velho, que era profundamente cioso de seus textos, nunca escreveu nada a respeito destas análises, desmentindo-as, satirizando-as. Àquela altura, a personagem era tratada como uma traidora.
    A atrevida Capitu, filha de “Pobres-Diabos”, sabe que deve, a todo custo, “entrar” para a casa da endinheirada família Santiago; prover sua ascensão social. Num primeiro momento falha, pois Bentinho, executando a promessa da mãe (falta iniciativa ao coitado para negar sua sina infeliz), interna-se num seminário. 
    Quando tem a oportunidade de retornar à casa materna, o rapaz se depara com uma Capitu inconfortavelmente travestida de “agregada”, fazendo pose de filha substituta na sala de D. Glória. 
    Adiante, a obrigação do seminário é contornada e a moça pode, enfim, livrar-se do fingimento e dedicar-se novamente ao projeto inicial. Agora, nada impediria o casamento dos dois enamorados. Chegara a hora de gozar a plena felicidade. 
    No entanto, para satisfação da sanha devassa do tempo que não costumava ignorar esse tipo de evento caseiro e constrangedor, dois anos escorrem e o casal não é capaz de gerar um filho.     Esse desgosto os atormenta (ambos têm seus motivos); "nada corria bem".
    Bentinho não é o primeiro tipo estéril da galeria Machadiana e ninguém melhor do que o autor realista para abordar tal assunto: Machado não teve filhos (dentro do casamento, segundo as más línguas).
    E, assim, depois de muita espera e reza, nasce uma criança, seguida de uma suspeita, uma certeza, um exílio e, no fim, a solidão.
    Depois desta exposição, espero que não me compreenda mal, querido leitor: Capitu é, surpreendente, moderna. Bem mais interessante e poderosa do que muitas mulheres que encontramos pela estrada à fora (ela torceu o próprio destino). Machismo, portanto, é atestar veementemente que uma moça tão autêntica, decidida, criativa, sedutora e extrovertida não trairia um homem tão esvaziado de iniciativa quanto Bento Santiago, um "boco-moco". Não duvidem: Capitu realizou-se. Ela nos olha.

MIRANDA, Rafael Puertas de. Capitu, adorável traidora. Jornal Mogi News, Mogi das Cruzes,  05 de Junho de 2011. Caderno Variedades, p. 03.

2 comentários:

  1. Magnífico!
    consigo imaginar esse texto em uma de suas aulas. Rs!

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  2. E segue atual seu texto, assim como a perspectiva do "brasileiro médio"...

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