terça-feira, 7 de maio de 2024

Da Importância dos Clássicos

    

    Numa tarde ensolarada, no ano de 1669, o Padre Antônio Vieira subia ao púlpito do exemplar Colégio de Santo Antão, em Lisboa, para proferir um Sermão em homenagem à Santo Inácio, fundador da Companhia de Jesus. Não há nenhum registro histórico desse sol enxerido, mas, quem leu até aqui, sabe que um texto é passível dessas artimanhas e, vindo de quem vem, não se esperaria outra coisa. O padre, no entanto, estava lá e o Sermão, também. 
    Vieira, que passou grande parte de sua vida em livros didáticos de Literatura Brasileira, fora confinado na casa dos jesuítas pelos homens do Santo Ofício, que não se conformavam com o teor de seus textos. Na oportunidade mencionada, havia sido liberado para pregar e não fugiu da tarefa. Imagino-o debruçado em sua mesa, escrevendo e reescrevendo o sermão, pois essa é a sina de quem luta com as palavras: tecer o sudário do ancião de Ítaca e destecê-lo, porque escrever envolve também o contrário. Desenredo.
    Erudito, o mestre da arte sermonária utilizou como referência para seu texto a autobiografia de Loyola, onde o gentil-homem de Azpeitia relata sua santificação por intermédio da leitura silenciosa e dedicada de uma obra que retratava a vida de santos do passado, tendo se interessado, sobretudo, pela vida de São Domingos e São Francisco. Proferiu Vieira, naquela ocasião, banhado pelo raio solar hipotético:
"Jazia Santo Inácio (não digo bem), jazia Dom Inácio de Loyola, malferido de uma bala francesa no cerco de Pamplona, e aborrecido, como valente que era, de ter perdido um castelo (fortaleza), pensava outros maiores castelos (fortalezas), pelas medidas dos seus espíritos. Já lhe parecia pouca defesa Navarra (cuja capital era Pamplona), pouca medida os Pirineus (cordilheira próxima, separando a Espanha, e sua província Navarra, da França), pouca conquista a França. Considerava-se capitão, e espanhol, e rendido (derrotado); e a dor lhe trazia a memória como Roma em Cipião, e Cartago em Aníbal foram despojos de Espanha: os Cids, os Pelaios, os Viriatos, os Lusos, os Geriões, os Hércules (antigos heróis lendários da Península Ibérica, Portugal e Espanha), eram os homens com cujas semelhanças heroicas o animava, e inquietava a fama, mais ferido da reputação da pátria, que das suas próprias feridas. 
Cansado de lutar com pensamentos tão vastos, pediu um livro de cavalarias para passar o tempo; mas oh Providência Divina! Um livro que só se achou era das vidas dos Santos. Bem pagou depois Santo Inácio em livros o que deveu a este. Mas vede quanto importa a lição de bons livros. Se o lera cavalarias, sairia Inácio um cavaleiro da ardente espada; leu vida de santos, saiu um Santo de ardente tocha (Lc 12,35: "Estejam as candeias acesas em vossas mãos"). Toma Inácio o livro nas mãos: lê-o a princípio com dissabor; pouco depois sem fastio; ultimamente com gosto; e dali por diante com fome, com ânsia, com cuidado, com desengano, com devoção, com lágrimas."
    Desse breve retalho vieirense, então, parte a reflexão que ora vos ofereço, lente incansável. Pode-se dizer que, nesta passagem arguta, quase um estalo, o Padre Vieira mira no Santo e acerta também na Literatura, ou melhor, na importância da leitura atenta do que se convencionou chamar de "Clássico". 
    Nestes tempos de olhos nervosos em ecrãs, abundam opinadores de redes, que questionam a utilidade dos Clássicos, malhando-os a sua maneira, com os mais diversos tons de cancelamento. "Afinal, de que serve toda essa leitura embolorada?     Qual a utilidade de um Clássico?", dedam incansáveis para, em seguida, recolherem-se aos volumes de sinistras e vazias bibliotecas alquímicas.
    Desde muito tempo, acredito que eles, os Clássicos, não tenham, mesmo, utilidade alguma. Ou melhor, num mundo onde o que tem valor é aquilo que agrega a maior quantidade de utilidades possíveis e imagináveis, os Clássicos persistem na sua condição inata de "inutensílios indispensáveis", como diria o poeta carateca bigodudo.
    Um livro de Machado de Assis, um verdadeiro matagal de palavras selvagens, em si, não tem utilidade nenhuma. Mas a lição que se tira, quando se lê uma obra como o romance "Quincas Borba" (1891), tem muito valor. E esse é o aspecto mais relevante de toda boa Literatura: o que se tira da leitura atenta dos Clássicos é uma das coisas mais valiosas que se pode ter nessa nossa jornada irrequieta.
    Aquele que vence o dissabor inicial e se lança nesse mergulho profundo, passa a reparar melhor nas coisas desse mundo. Ler um Clássico é contemplar a si mesmo e a toda humanidade; é o exercício mais profundo de humildade e paciência. Longe deles, há vazio e desgosto. Perto, entendimento e sensatez. Aqueles que descobrem esse tesouro cedo estão livres de muita tribulação. 
    Por esse mesmo motivo, a despeito da sanha insistente dos mercadores da ignorância e dos que nunca experimentaram essa jornada por teimosia, os Clássicos continuam a brilhar, iluminando os dias daqueles que se deixam guiar pelas letras, com perseverança. Logo, essa é a minha entusiasmada e simplória opinião a respeito dos Clássicos. Se concordas, sorri. Se discordas, aceito a careta. A bem da verdade, é a mesma coisa. A Constelação do Cruzeiro do Sul está assaz alta para não discernir os risos e as caretas dos homens.  

Professor Rafael Puertas de Miranda - Mogi das Cruzes (SP).

Texto publiado na Revista do Colégio Santa Mônica 2023/2024.