terça-feira, 29 de maio de 2012

Noites Perdidas


“A Consciência Humana é este morcego!
Por mais que a gente faça, à noite, ele entra
Imperceptivelmente em nosso quarto!”
(“O Morcego”, de Augusto dos Anjos)

A madrugada é a boca do acaso, do incidente fortuito, do evento inesperado, da coincidência ébria. Verdades teimosas se ocultam entre as frestas escuras de bares de toda sorte, onde náufragos bêbados ruminam suas empreitas, seus infortúnios, suas sarjetas.  A louca noite.
Nestes instigantes ambientes espessos e esfumaçados, os destinos das personagens do Conto “Dentista”, de Roberto Bolaño (1953-2003), encontrado no excelente livro “Putas Assassinas” (Companhia das Letras, 2008), são-nos delineados por um narrador em primeira pessoa atormentado por uma recente desilusão amorosa e que procura, na cidade mexicana de Irapuatu, serenidade e tempo para pensar no futuro.
Logo que chega, é recepcionado pelo seu colega de universidade, Pancho, e não de profissão: aquele formado em letras; este, em odontologia. O amigo hospedeiro confessa-lhe de supetão que é “responsável” pela morte de uma índia, que fora operada por dois cirurgiões novatos inábeis em seu consultório. Tanto ele, quanto os jovens atrapalhados, trabalham como voluntários, atendendo pessoas humildes da comunidade.
E este pretexto suspenso (e não é o único), esta chaga latejante na consciência, impele-os a uma verdadeira romaria pelos bares e espeluncas da periferia da cidade, incursões urbanas madrugada adentro.
A nota da ebriedade se evidencia com os apelos confessionais e as dúvidas intermináveis, ninadas por espasmos loucos de teorização e especulações a respeito da Arte. Talvez, inócuos; talvez, brilhantes: “A Arte é a única história particular possível”.
A (des)conversa lânguida e intermitente é também o suspiro frustrado de uma geração; reflexos em copos. Para coroar o vazio, surge na trama uma curiosa figura acidental: um jovem poeta mestiço, espécie de Rimbaud anônimo, conhecido do dentista. A presença do menino, habitante do esquecimento, e seus textos brilhantes embalam as noites perdidas.
Com sua prosa envolvente e ríspida, que dispensa penduricalhos, vampiros assépticos e pudicos, alquimistas e bruxas de butique, Bolaño nos oferta o incômodo, a consciência da culpa. Como nos textos inspiradores de Branquinho da Fonseca, não há ali espaço para fabulação. Só a experiência mundana é capaz de abalar os “vazios edifícios” da alma. Vale!

MIRANDA, Rafael Puertas de. Noites Perdidas. Jornal Mogi News, Mogi das Cruzes, 17 de Julho de 2011. Caderno Variedades, p. 03.

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