“A Consciência Humana é este morcego!
Por mais que a gente faça, à noite, ele
entra
Imperceptivelmente em nosso quarto!”
(“O Morcego”, de Augusto dos Anjos)
A madrugada é a boca do acaso, do
incidente fortuito, do evento inesperado, da coincidência ébria. Verdades
teimosas se ocultam entre as frestas escuras de bares de toda sorte, onde
náufragos bêbados ruminam suas empreitas, seus infortúnios, suas sarjetas. A louca noite.
Nestes instigantes ambientes
espessos e esfumaçados, os destinos das personagens do Conto “Dentista”, de
Roberto Bolaño (1953-2003), encontrado no excelente livro “Putas Assassinas” (Companhia das Letras, 2008), são-nos delineados
por um narrador em primeira pessoa atormentado por uma recente desilusão
amorosa e que procura, na cidade mexicana de Irapuatu, serenidade e tempo para
pensar no futuro.
Logo que chega, é recepcionado
pelo seu colega de universidade, Pancho, e não de profissão: aquele formado em
letras; este, em odontologia. O amigo hospedeiro confessa-lhe de supetão que é
“responsável” pela morte de uma índia, que fora operada por dois cirurgiões novatos
inábeis em seu consultório. Tanto ele, quanto os jovens atrapalhados, trabalham
como voluntários, atendendo pessoas humildes da comunidade.
E este pretexto suspenso (e não é
o único), esta chaga latejante na consciência, impele-os a uma verdadeira
romaria pelos bares e espeluncas da periferia da cidade, incursões urbanas
madrugada adentro.
A nota da ebriedade se evidencia
com os apelos confessionais e as dúvidas intermináveis, ninadas por espasmos
loucos de teorização e especulações a respeito da Arte. Talvez, inócuos; talvez,
brilhantes: “A Arte é a única história
particular possível”.
A (des)conversa lânguida e
intermitente é também o suspiro frustrado de uma geração; reflexos em copos.
Para coroar o vazio, surge na trama uma curiosa figura acidental: um jovem
poeta mestiço, espécie de Rimbaud anônimo, conhecido do dentista. A presença do
menino, habitante do esquecimento, e seus textos brilhantes embalam as noites
perdidas.
Com sua prosa envolvente e ríspida,
que dispensa penduricalhos, vampiros assépticos e pudicos, alquimistas e bruxas
de butique, Bolaño nos oferta o incômodo, a consciência da culpa. Como nos
textos inspiradores de Branquinho da Fonseca, não há ali espaço para fabulação.
Só a experiência mundana é capaz de abalar os “vazios edifícios” da alma. Vale!
MIRANDA, Rafael Puertas de. Noites Perdidas. Jornal Mogi News, Mogi das Cruzes,
17 de Julho de 2011. Caderno Variedades, p. 03.
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